Era já noite, a cidade estava silenciosa e serena quando a rádio começou a transmitir Grândola Vila Morena.
Foi o sinal para o arranque da pequena revolução que é o programa semanal do Xavier Meade nas noites de domingo da Rádio Raglan “Viva la Musica” emite música do mundo desde esse fim do mundo na perspetiva de um português que é a pequena comunidade rural de Raglan, Nova Zelândia.
Poucas vezes disse isto de um lugarzinho que visitei, e dessas poucas nenhuma foi com tanta convicção como a vez em que o disse de Raglan: “Este é o lugar onde eu gostaria um dia de assentar, criar família, envelhecer”. Foi a mesma coisa que pensou o Xavier quando chegou a Raglan, com a Caroline, há vinte e tal anos. Tinham-se conhecido de férias em Londres no final dos anos setenta, ele mexicano, ela neozelandesa, estudantes à beira desse precipício que é o início da vida adulta, deram o passo em frente de mãos dadas.
A primeira coisa que tiveram que aprender foi a comunicar um com o outro sem ser por gestos, ou seja, com a fala: o Xavier aprendeu inglês, a Caroline aprendeu espanhol. A segunda foi a vencer a distância: quando o visto do Xavier caducou e ele teve que regressar ao seu país, a Caroline não hesitou: apanhou um navio e desembarcou em Acapulco uns meses depois. Assentaram na Cidade do México, arquiteto e professora, intelectuais ativos e felizes no meio cultural de uma das capitais mais estimulantes do mundo.
A terceira coisa que tiveram que aprender foi a alterar a escala de sociabilidade quando se mudaram de uma cidade com vinte milhões de habitantes para outra que tem dois mil. Para lá da vida profissional o Xavier dá aulas de eco arquitetura na Universidade de Hamilton, a cinquenta quilómetros de Raglan; a Caroline é jardineira paisagística o casal está envolvido na programação cultural do festival de música de Raglan.
E ao domingo ao cair da noite, Xavier tem o seu compromisso com os ouvintes da Rádio Raglan.
Recentemente regressei a Raglan, que para um português é como regressar ao fim do mundo: se olharmos para o globo, não há lugar mais distante para nós do que a Nova Zelândia. Antes de viajar, escrevi ao Xavier a perguntar se precisava de alguma coisa de Portugal. Respondeu-me que precisava de mim como convidado no seu programa.
“Falaremos da música do teu país”, explicou.
E concluiu: “Traz música contigo”.
Não sei muito da revolução que terminou com a ditadura fascista em Portugal e dos anos que seguiram. Por um lado, eu ainda era muito pequeno no 25 de Abril, tinha seis anos, lembro-me do jardim-escola não ter aberto nessa manhã e da alegria do grupo de amigos dos meus pais ao fim da tarde. Não me lembro se na pequena e periférica Figueira da Foz houve marchas espontâneas e desfiles de carros a buzinar como terá havido em Lisboa e no Porto. Se por um lado era ainda muito novo, por outro lado são acontecimentos demasiado recentes e regularmente comentados para obrigarem a uma curiosidade mais aprofundada, como quando, ao querermos saber mais sobre a Revolução Francesa ou sobre a Guerra dos Trinta Anos, nos pomos a ler um livro ou um artigo na enciclopédia sobre o tema. Não sei muito sobre o período revolucionário do meu país; sei, no entanto, bastante da música que esse período produziu.
A minha opção de apresentar este género não partiu portanto de um interesse particular pela Revolução, mas sim por um interesse particular pela música da Revolução. Excluí o Fado porque está demasiado conhecido por quem gosta de Música do Mundo; e o Pop-Rock é igual a todos os outros popes rockes do resto do mundo.
Pensando bem, talvez se possa mesmo defender que as canções que se fizeram nos anos que rodeiam o 25 de Abril, e dedicadas a ele, sejam as mais portuguesas de sempre, com a sua mistura de urbano e rural, antigo e intervencionista, tradicional e eclético. Penso nas soluções originais de raiz rural do Zeca Afonso, nas harmonizações inéditas mas tocadas com instrumentos populares do Sérgio Godinho, na força universal da tipicidade lusitana dos Trovante.
Essa era alguma da música que levei para a Nova Zelândia. Seguiam na bagagem também o José Mário Branco, o Vitorino, o Adriano, o Cília e o Carlos do Carmo -este último não por causa do Fado mas por causa daquele meddley de homenagem aos cantautores de Abril que ele apresenta no disco do Olympia.
Começámos pois a nossa pequena revolução radiofónica com Grândola Vila Morena, seguimos com Os Pontos nos is, Trova do Vento que Passa, e ainda Uns Vão Bem e Outros Mal, Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades, e por aí fora. Eu ia explicando em inglês os títulos, os temas, as razões, a conjuntura em que nasceram todas estas canções. O Xavier fazia perguntas que contextualizavam a música dessa noite num passado distante de caravelas e impérios e num passado recente de ativismo, lutas e conquistas sociais.
Não sei o que terão pensado os agricultores, os criadores de gado, os pescadores dessa comunidade rural de duas mil almas, sobre esta revolução que lhes entrava em casa na noite serena. Terão talvez pensado que este povo português é tramado. Um povo de irredutíveis idealistas. E também um povo solidário, sensato, espartano, gente imune às tentações do consumismo bacoco e arrivista.
Eu não desfiz o engano no final do programa, deixei-os ficar com essa ideia. Para se atualizarem, terão que vir ao fim do mundo para eles. É muito longe…