Autobiografia Não Autorizada
A de apaga
Escreve sobre o quê? Hesito. Perguntam-me isto desde sempre, Escrevo sobre o quê? Receio que quando souber a resposta certa nada mais tenha para escrever
A céu aberto
Quando nos mergulham tempo demais nas mesmas palavras, as nossas apodrecem, as nossas palavras passam a ser as outras tornamo-nos altifalantes acéfalos, perros
Os nossos rostos
A morte, cansada de andar sonsa pelas enfermarias dos hospitais, mais de dois anos a apoucar anónima secreta aborrecidamente o valor de cada vida, deseja a guerra
A solitária aprendizagem da maldade
Ainda não sabia ler nem escrever, mas desde sempre tudo me ensinava que nós éramos brancos e eles não, nós éramos colonos e eles não
Meia-noite, no jardim do Bem e do Mal
Mantive-me calada a maior parte do tempo e subitamente, Queres que te ofereça o meu colar?, perguntou-me a Adília Lopes, levando a mão quase infantil às contas do colar de madeira que trazia
Parabéns, Shane
Ele sabia bem dessa outra dimensão. Os pais haviam-no iniciado no consumo de drogas ainda ele não tinha dez anos, Não tive escolha, declarava sem amargura, Vivi o que tive de viver. Aprendi com o Shane que tudo se pode contar. O absurdamente trágico e o desprezível banal. As palavras são o que nos resta para tentarmos tornar compreensível aquilo que não o é
Sonhei, a noite passada
Eu continuei a crescer, continuamos sempre a crescer, mesmo quando o corpo para e começamos a enrodilhar por dentro. Gostava de acreditar que foram as palavras da Nóemia e da Daphne du Maurier que me guiaram para o homem bom com quem me casei, mas hoje sei que nas coisas do amor é mais a sorte doque a lucidez que comanda
Desconhecimento do céu
Tentara fazer amigos alemães fora da residência, mas desistira, não é simples ser-se estrangeiro. Na verdade, os amigos não se procuram, acontecem, como qualquer outro milagre. Naquele domingo, uma opressora cor de chumbo entristecia a cidade, por igual. Considerando as várias hipóteses de me entreter, decidi ir a Nuremberga
Estar em mim
Continua a não ser fácil falar-se de ansiedade, depressão, obsessão, toxicodependência, compulsão, fomos convencidos de maneira mais ou menos subliminar de que sofrer de doença psiquiátrica é sinal de fraqueza
Azar de principiante
Passei a adolescência a requisitar livros da biblioteca e a copiar à mão os romances de que mais gostava, conheço-os intimamente
O homem em queda
Todos nos lembramos de como parámos perante a notícia que irmanou a Humanidade numa desacertada memória coletiva. Parecia importante sabermos o que estávamos a fazer àquela hora. Como se precisássemos de um álibi para nos inocentarmos
Coral
Arrependo-me do verniz que escolhi para as unhas, Torna as mãos mais jovens e dá-nos outro ânimo, é uma cor de verão, aconselhou-me a Carla, a manicura, enquanto desenroscava a tampa do frasco do verniz para me mostrar a pasta coral pegajosamente sintética nele guardada, É das cores com mais saída em Nova Iorque, de certeza que vai gostar
Jardi ou o jardim sem fim
À medida que vou envelhecendo, aprendo e desaprendo muitas coisas. Desaprendo mais do que aprendo. Não me angustio com isso, confio que a cabeça guardará o que é importante. A cabeça e o coração. Mas tenho pena de desaprender a esperança
No fundo do armário escuro
O que seria uma atividade de rotina transformou-se numa descoberta surpreendente, já que num dos estúdios viu, no fundo de um armário, cuja porta estava aberta, a prótese de uma perna