António Ferreira da Silva, coronel que nos tempos de brasa do pós-revolução, coordenou, a dada altura, as investigações da Polícia Judiciária à chamada rede bombista de extrema-direita, faleceu na quarta-feira, 11, aos 77 anos, de doença súbita.
Ao serviço da Polícia Judiciária Militar, Ferreira da Silva coordenou, durante largo período, as operações e investigações que levaram à detenção de vários operacionais da direita radical na fase turbulenta da democracia. O seu testemunho desses tempos, com recurso a documentos inéditos do seu precioso arquivo pessoal, ficou registado num dos capítulos do livro Quando Portugal Ardeu (Oficina do Livro), da autoria do jornalista da VISÃO, Miguel Carvalho, cujo conteúdo aqui transcrevemos na íntegra.
Coronel Ferreira da Silva
OS DIÁRIOS DO CAPITÃO
In “Quando Portugal Ardeu”, por Miguel Carvalho
Não tinha inclinações políticas. Para o bem e para o mal, «os beirões são homens de trabalho e é isso que ensinam aos filhos». Os pais eram de Nelas, mas António Ferreira da Silva viria a nascer em Lisboa, a 7 de maio de 1942.
O testemunho que passou às filhas e aos netos é igual ao que bebeu nas raízes paternas e nas paisagens de Aquilino Ribeiro: dar-se com toda a gente, sem preconceitos de classe ou ideológicos. «É esse o meu exemplo. Os meus melhores amigos eram os ciganos e os pés-descalços das barracas que viviam ao pé de mim, em Alvalade, no início da construção do bairro. Ainda hoje sou uma estrela por lá.»
Vivera, à distância e sem arremedos, as lutas estudantis de 1961.
Ainda cursou Matemáticas, mas os números pouco puderam diante do namoro com a mulher com a qual haveria de se casar. Por via de «caldeiradas» e «cunhas» familiares, entraria na academia militar. Nunca lhe passou para cabeça seguir a carreira, mas foi como se olhasse para dentro de si próprio pela primeira vez. Reconheceu-se por inteiro. «Gostei muito e não voltaria atrás.»
Esteve em Moçambique e, no regresso, acabou na GNR. Por pouco tempo. Em 1972, foi parar à PSP de Lisboa; em outubro desse ano, é enviado para o funeral de Ribeiro dos Santos, militante do MRPP assassinado pela PIDE. «Estive mesmo no olho do furacão. Foi o meu primeiro serviço. Levei tanta pedrada e fiquei tão chocado que acabei a pensar: “Então venho do Ultramar para andar aqui noutra guerra?!”» Por essa altura, continuava sem amadurecer qualquer consciência política. «E mesmo esses garbosos militares que se meteram na revolução, tirando um ou outro, sabiam tanto como eu.»
A 25 de Abril de 1974, estava na Guiné, para onde fora 15 dias antes. Ainda na PSP, tinha sido abordado pelo amigo e militar Dinis de Almeida para integrar os preparativos para a queda do regime. «O Dinis de Almeida tornou-se revolucionário porque teve um acidente de carro em Moçambique, partiu um braço, veio para aqui, apanharam-no sem fazer nada e ele começou a ser pombo-correio de outros revolucionários. Foi nessa altura que veio ter comigo», graceja Ferreira da Silva. Nas suas memórias, Dinis de Almeida escreve que o capitão desta história recusou envolver-se nos preparativos do golpe de Estado. Ele, porém, oferece outra versão: «Disse-lhe assim: enquanto estiver na polícia, não posso meter-me em altas cavalarias. Para mim, seria uma falta de lealdade total. Se eu me quisesse meter nessas coisas, pedia a minha demissão da polícia.»
Quando volta a Lisboa, em outubro de 1974, «estava tudo muito quentinho». Foi colocado no Regimento de Artilharia de Costa, que tinha por missão assegurar a defesa dos acessos aos portos de Lisboa e de Setúbal. «Se tivesse regressado logo a seguir ao 25 de Abril, tinha ido preso», precisa. «A minha mulher escreveu-me a dizer que andavam à minha procura. Foi pedida a minha captura. Enquanto polícia, tinha estado metido nas guerras estudantis do Instituto Superior Técnico e outras. Tanta pancadaria houve que era lógico que o fizessem.»
Olhado pela esquerda do Exército como um «feroz reacionário», é enviado para a Figueira da Foz, «para dar recruta durante três meses». Em Lisboa, cochicha-se o seu saneamento – e o rumor chega-lhe aos ouvidos.
Mete-se no comboio a 11 de março de 1975, data da tentativa golpista de direita para inverter o processo revolucionário. «Tivera um pequeno acidente na Figueira, com umas granadas adulteradas do Ultramar, por isso ia com o blusão e as calças queimados, de braço ao peito. Em Alverca entraram os gajos das brigadas de vigilância revolucionária, com um furriel à frente. Mas também havia civis na carruagem, a mandar abrir as malas todas. Disse a um deles: “O senhor não mexe na minha mala, na minha mala só mexem militares.” Foi logo chamar o furriel. E eu expliquei: “Se quiser abra a mala, mas depois volta a fechar, que eu não estou em condições.” Não abriram.»
De regresso ao regimento, não tardou a receber uma ordem para se apresentar na Direção da Arma de Artilharia. «O meu nome estava mesmo numa lista de saneamentos. Disse para me passarem a guia de marcha para me ir embora. Mas alguns oficiais cozinharam tudo com o diretor e não me deixaram ir para casa.»
Começava aí o primeiro dia do resto da sua vida.
Desse período, Ferreira da Silva guardou uma «fita do tempo», manuscrita, de todos os passos que deu. Não fosse o Diabo tecê-las – e sabe-se como esses foram dias do Diabo –, nos seus arquivos repousam relatórios, cartas, atas de reuniões e outras anotações pessoais para a memória futura. Mais de 40 anos volvidos sobre os acontecimentos daquela época, centenas de documentos libertam-se das suas amarras, quebra-se o silêncio e sacode-se a poeira de um tempo. De viva voz.
Como foi parar à Polícia Judiciária Militar (PJM)?
Um dia estou a ler a ordem de serviço e vejo lá um convite para a Polícia Judiciária Militar, que era um novo órgão que estava a ser criado. Falava-se que a PJM ia ser a nova PIDE e pensei com os meus botões: «Pá, não te metas mais em trabalhos.» Mas lá me meti no carrinho e fui à PJM, que era onde é hoje o Ministério da Defesa, no 8º andar. Cheguei e não vi ninguém. Depois apareceu-me uma senhora de calças na mão, devia vir da casa de banho. Apresentou-se: «Sou a Maria Sidónia, secretária do senhor director.» Perguntou-me se queria falar com ele, mas disse que não. Só tinha ido ver como aquilo era. Mas ela lá chamou o coronel Ernesto Augusto Ramos. O homem metia medo, tinha fama de mau feitio. Justifiquei-me: «Estava a pensar vir para aqui, mas queria ver primeiro o que isto era.» E pergunta-me ele: «Que experiência é que você tem de investigação?» Zero. Durante dois anos tinha sido comandante da PSP em Lisboa, mais nada. «Você é o homem que eu preciso aqui!» Na PJM não havia mais ninguém. Era ele e o capitão Antunes. Ainda lhe disse: «Mas olhe que eu estou na lista de saneamentos.» E ele: «Vai já oferecer-se. Quem responde pelo seu saneamento sou eu.»
Saneamento resolvido, portanto…
Veio depois uma ordem do Conselho da Revolução, do Costa Neves, para me apresentar na PJM. Fui estagiar para a PJ, em Lisboa. Fiz as noites todas. Apanho o «Verão Quente» em estágio, mas os primeiros processos que me vêm parar às mãos são dos gajos presos na sequência do 28 de setembro de 1974. Eram quase todos da Legião, por aí. Mandaram-me ouvi-los. Estavam quase todos presos sem culpa formada, não havia sequer um papel para saber porque é que estavam presos. Comecei a fazer propostas para pôr toda a gente em liberdade, um a um, e foi-se tudo embora. Era uma questão de justiça. Depois fui integrar as equipas que investigaram o 25 de novembro de 1975. Resumindo e concluindo: fui ouvir os gajos que me queriam sanear.
Irónico, no mínimo…
Fui um dia a Santarém ouvir o Otelo e outros. Passei lá um dia porreiro, o Otelo é sempre um gajo porreiro, mas ninguém quis prestar declarações. Fui também a Caxias. Tinham sempre lá uma mesa que parecia um casamento. Aqueles agricultores ali da zona levavam-lhes todas as iguarias à prisão. Passei lá um dia porreiríssimo! Era caricato estar a ouvir os gajos que tinham sido meus inimigos figadais, mas uma coisa que os militares têm de bom é que não criam ódios. Podemos falar mal nas costas uns dos outros, mas não ficam rancores.
Como lhe cai no colo a rede bombista?
A PJ começou a fugir com o rabo à seringa e foi feita legislação de exceção que atribuiu às Forças Armadas a investigação sobre posse ilegal de armas e explosivos. Tudo o que era apanhado com armas ou explosivos vinha parar-nos às mãos. Um dia, estava eu lá nos meus processos e disseram: vem aí o teu padrinho. Era o coronel Ramos. Ele tratava-me como um filho. Tudo o que lhe pedia, ele fazia. «Entrega os teus processos todos, que vamos os dois para o Porto», anuncia-me ele. Quem estava no gabinete era o Bicho Beatriz, que era um eminente capitão ligado ao setor das Informações. Os tipos das Informações, da 2.ª Divisão, já sabiam os nomes todos dos tipos da rede bombista, mas não davam a cara, fugiam com o rabo à seringa. E eu disse: «Então eu é que vou para lá descobrir o que vocês já sabem?»
Disseram-lhe quem iam procurar, o que iam fazer?
A mim ninguém me disse quem é que eu ia procurar, só me disseram que ia investigar a rede bombista. Tinha havido uma reunião em Lisboa com o Ramalho Eanes e o Pinheiro de Azevedo, que, ao seu estilo, disse: «Ó Eanes, temos de acabar com as bombas, isto não pode ser…» Disponibilizaram logo uns milhares de contos…
É verdade que houve total disponibilidade de meios?
Sim, é verdade. Dois mil contos.
E uma equipa de 30 militares?
Já lá vamos chegar… Quando vou daqui para o Porto com o coronel Ramos, ele diz-me: «Eh pá, tu vais chefiar uma equipa de 30 militares, dez de cada ramo. Alguns já lá estão.» Eu, como tinha a coordenação da investigação, podia decidir ações, com recurso a militares, algo que a PJ não podia fazer. Resumindo: tive lá um cabo da Marinha, de nome Pereira, e dos 30 militares prometidos não apareceu mais nenhum.
O que fez quando chegou?
Fui ao quartel-general. Era chefe da 2.ª Repartição um oficial de Artilharia, que meteu logo os pés pelas mãos ao dizer que eu ia descobrir armas em casa de algumas pessoas e tal. E eu disse: «Bem, se o tenente-coronel me está a dizer o que vou descobrir, vou-me já embora, não estou aqui a fazer nada.» Pensei: bem, eu sou amador, mas esta malta ainda é pior do que eu.
Como foi a sua entrada na PJ do Porto?
Cheguei lá no dia 14 de julho de 1976. Fui-me apresentar na célebre função de coordenador da equipa de 30 militares que, afinal, era só um (risos)… Bem, era só um, mas muito importante: foi o tal cabo que se infiltrou na rede bombista. Era o que me ia informando de alguma coisa de jeito. Por artes que desconheço, lá conseguiu meter-se no meio deles. Ia com eles para todo o lado, para os bares, etc. Dizia-me quem andava com armas, quem tinha pistolas e por aí adiante. Esteve pouco tempo infiltrado e creio que nem sequer se despediu de mim.
É verdade que entrou na sede da PJ do Porto com uma arma e disse: «Eu venho apanhar o “Corrécio”»?
Huuummm… Isso é falso. Tenho ódio a armas, nem as tenho em casa… Estava aqui a pensar, mas não me lembro disso… Na PJ do Porto, sabiam tudo sobre o Eduardo «Corrécio», mas não conseguiam fazer nada… A verdade é que entrei de manhã e à tarde perguntei: «Têm carros? Então se o problema é apanhar o «Corrécio», vamos já para Braga!» Eles devem ter pensado: este vem armado aos cucos, então andámos aqui há tanto tempo e ele agora já vai apanhá-lo? Eles andavam ao gato e ao rato com o «Corrécio». Tentavam apanhá-lo, ele fugia. Era o «Corrécio» e o Fernando «Cigano». Fiz o que fazem os militares: o que há para fazer faz-se logo.
Qual era o ambiente na PJ?
Havia mau ambiente, começaram logo a contar-me coisas sobre o envolvimento do inspetor Júlio Regadas na rede bombista. Mas lá fomos para Braga. Um dos homens que me acompanhavam era o Lopes Duarte, que andaria sempre comigo. Decidiu-se que íamos logo tentar apanhar o Fernando «Cigano», pois ele deveria saber onde estava o «Corrécio». Vi-o num Mercedes, quando estava sozinho, e fui atrás dele. Fui bater-lhe à porta, disse «sou fulano, assim, assim» e ele: «Só abro a porta se vier o major não sei quantos», que era o comandante da PSP. A polícia estava toda minada. Ele quis foi ganhar tempo para atirar as armas todas ao rio. Acabei por me ir embora. Ora, se a polícia estava toda feita com eles, tínhamos de tentar outra coisa. Pus-me nas minhas tamanquinhas e fui ter com o comandante da GNR. Foram fantásticos. Montámos uma operação stop em Braga, nas entradas e nas saídas da cidade. Eram oito saídas, ainda me lembro… Soubemos que o «Corrécio» estava num café à beira rio em Braga. Lá fomos. O gajo ainda tentou fugir, pegou numa pistola, começou aos tiros, mas um tipo da GNR acertou-lhe no ombro.
Que primeira impressão guardou dele?
O gajo era o terror ali da zona! Batia em toda a gente, nas festas, nas feiras, roubava… Aquilo era obra de um bando que andava à solta, mas não tinha nada de política. Os gajos da política é que lhe diziam: «Vai lá dar um enxerto de porrada naquele tipo.» E ele ia. Depois tivemos uma noite de pandemónio. Ele foi levado para o Hospital de São João, no Porto. Foi preciso montar segurança, estava-se com medo de que os outros gajos do bando tentassem entrar no hospital. No dia seguinte, o coronel Ramos telefona-me e diz: «Vais trazer o “Corrécio” para Lisboa.» Mandou um avião da Força Aérea…
O «Corrécio» ia morrendo na viagem, diz-se…
Não ia nada! O problema é que um dos tiros perfurou-lhe a ponta de um pulmão, ele dava umas golfadas e como estava todo borrado por nunca ter andado de avião, sentiu-se mal. Eu ia sentado ao lado dele, fardado, e quando cheguei a Lisboa quem parecia o ferido era eu, que o gajo vomitou-me sangue para a farda… Na viagem, foi-me dizendo uma série de merdas. Indicou-me quintas onde havia armas e outras coisas. Fiz um relatório para a 2.ª Repartição do Estado-Maior do Exército. Devem ter deitado aquilo ao lixo, porque nunca fizeram nada.
Nessa viagem falou dos «serviços» políticos que fazia?
Aí, sim, é que ele falou. Mas disse logo: «Bombas não é comigo, isso é com o Ramiro Moreira e os gajos da Póvoa.» Mas ele fazia de tudo, era como o Ramiro. Um gajo «giro»… (risos).
Diários do Capitão, 3 de agosto de 1976. Ferreira da Silva descreve, nos seus «diários», o impacto «muito positivo» que a detenção do «Corrécio» teve na população de Braga, embora na cidade muita gente perguntasse por que havia demorado tanto. Eduardo da Costa Oliveira foi o carismático líder desta quadrilha que transformou Braga num cenário de faroeste, entre 1975 e os primeiros anos da década de 80. Nascido em 1950, tornara-se conhecido, ainda catraio, pelo seu feitio mais atravessado numa prole de cinco rapazes e um trio de raparigas nascidos de três casamentos maternos. Eduardo ganhou a alcunha «Corrécio» na escola primária, dado o seu caráter indisciplinado e os instintos agressivos com colegas e professores. Nas mãos do pai, foi um Cristo.
O progenitor, vendedor de lotarias e engraxador de sapatos, chegava a casa a desoras, já turvo pelo álcool, e atestava mágoas no corpo franzino do filho. Criança já então fugidia aos deveres escolares, Eduardo arrancava tábuas do soalho para se esconder das fúrias do pai. Por vezes, e porque a tareia era certa, deitava-se antes de o progenitor chegar e dormia vestido com dois pares de calças, para amortecer a violência da surra.
Foi trolha, passador de emigrantes a salto, negociou automóveis e trabalhou em minas de carvão espanholas. Sempre preocupado com o bem-estar dos irmãos, ele era, para a mãe, o amparo da casa.
Julgado três vezes antes do 25 de Abril de 1974 por furto, engajamento de emigrantes, estupro e atentado ao pudor, estava na cadeia de Paços de Ferreira quando, no dia da liberdade, foi visitado por familiares. Apareceu então com uma flor vermelha ao peito, de plástico, por não ter conseguido arranjar cravos.
As suas façanhas viraram lenda. A partir do antigo bairro Araújo Carandá, onde residia, ele e alguns elementos do bando de irmãos, primos e amigos que liderava tornaram-se, a partir de fevereiro de 1975, guarda-costas de vários dirigentes do CDS do distrito de Braga. Passam a ser vistos com automóveis de gama alta, compram casas, pagam eles próprios a outros grupos de marginais para atazanar e agredir personalidades de esquerda, entre as quais o advogado Humberto Soeiro. As ações vão da intimidação simples ao puro terror. Partem para a violência à luz do dia, ou pela calada, sempre que farejam comunistas por perto ou a pretexto de uma colagem de cartazes por parte de militantes de esquerda. Usam matracas, chicotes, correntes e pistolas, mas Eduardo não se coíbe de varrer, a rajadas de metralhadora, a livraria de Vítor de Sá, prestigiada figura da esquerda minhota. Os ataques bombistas a alvos «comunistas» têm também a sua marca.
Os cafés Buraca, Ding-Dong e São João são locais de poiso diário e de congeminação. «Se há aqui algum comunista, tem um minuto para sair!», ameaçava Eduardo, quando entrava no São João, de arma em punho. Uma vez, chegara a sentar-se no snack-bar com o pastor alemão que trazia pela trela. Pediu dois bifes no prato, um deles para o animal. Quando o empregado esboçou sinal de desaprovação, foi ameaçado. «Ele não é um ser como eu? Então come à mesa comigo», contaram ao repórter Luís Humberto Marcos que, sob o pseudónimo de José Bento, relatara para o Diário de Lisboa a impunidade dos «Corrécios», benquistos pela PSP local. «Fui aos sítios frequentados pelas pessoas que já tinham sido ameaçadas. Se não pagassem uma mensalidade, rebentava uma bomba, era assim que eles funcionavam. Senti que a PSP os protegia. Dissuadiam os jornalistas de lá ir. Diziam que era um bocado invenção, as pessoas lidavam bem com aquilo», recorda o antigo repórter. «Ele não pode ver os comunistas e isso mete-o em sarilhos», admitira o major Brandão, sem valorizar em demasia as «cenas de pancadaria» que «resultam numa ou duas cabeças rachadas».
Em Braga, porém, a lei era mesmo a dos «Corrécios».
Circulavam na cidade, madrugada dentro, em velocidades ruidosas, fazendo peões, subindo os passeios, sem que alguém os detivesse. A polícia não se atrevia sequer a multar os carros da quadrilha. Fernando «Cigano», um dos elementos que faziam a ponte com a rede bombista, através do ELP e do MDLP, descia a cidade a cavalo, enquanto a PSP mandava parar o trânsito à sua passagem. Eduardo é conotado com aquelas organizações, mas desconversa: «Já lá estive uns tempos, mas sinceramente lhe digo, não sei se era o MDLP ou o ELP, ou lá o que era», comentara a um jornalista. «Sei que conheci uns pides e ainda fiz um trabalho de passagem de armas para Portugal. Mas eles nunca me pagaram, voltei sem um tostão. Não posso garantir que fosse o MDLP, era uma organização dessas, mas não sei qual, não se falava disso.» Mais em privado, comentara: «Defendo os que me pagam.»
Eduardo tornara-se, segundo os jornais, «mais popular na capital do Minho do que o bacalhau demolhado no tanque». Religioso, tinha muita fé na Senhora do Sameiro, mas os comunistas eram, para ele, o Diabo, rezavam os relatos familiares. Diário oficioso da contrarrevolução, O Comércio do Porto ajudara a perpetuar o mito, criando à sua volta uma auréola de audácia e valentia. Nesse tempo, acorrem a Braga várias raparigas ávidas de conhecer os elementos da quadrilha, movidas por desejos de aventuras e em busca de sensações fortes.
Durante as campanhas eleitorais de 1975 e 1976, os «Corrécios» passeavam-se em diversos carros com bandeiras do CDS. Essa era a ligação oficial de Eduardo, mas havia outras. «O cónego Melo protegia-o», garante Eurico Pereira, ex-inspetor da PJ em Braga, um dos homens que acompanharam as primeiras investigações da rede bombista e estaria na peugada dos «Corrécios» até 1983. «Muitos industriais davam-lhes dinheiro e proteção por medo. Mas no topo estava o cónego Melo. Outro que os financiava era o Onorato, da pastelaria Ritz», concretiza. Quando se encontrava em apuros, Eduardo ia esconder-se em Espanha.
Deitar-lhe a mão era um caso sério.
Certa ocasião conseguira mesmo escapar ao cerco montado pela PSP e pela PJ, na boîte Privée, de Braga. «Estava um tipo da polícia com uma metralhadora à entrada, à espera dele, mas nem se mexeu. O Eduardo levantou-se, deu um tiro e fugiu. Não me apanhou por acaso. O gajo da PSP só dizia: “Vão-se mas é embora, que ele tem uma grande quadrilha e vocês ainda se dão mal!”», conta Lopes Duarte, braço-direito do capitão Ferreira da Silva quando a PJ começou a puxar o fio à meada da rede bombista. Surpreendida pela perseguição, a mulher de Eduardo terá desabafado perante os polícias: «Então vocês andaram primeiro a mandá-lo pôr bombas e fogos e agora vêm prendê-lo?»
Detido diversas vezes, Eduardo era mestre na arte da fuga.
Assim aconteceu quando foi preso em Cabeceiras de Basto por posse de arma de guerra e noutras ocasiões. Nem chegava a aquecer a cela.
Preso, por fim, a 15 de julho de 1976 na operação relatada por Ferreira da Silva, e da qual sairia ferido, Eduardo foi transferido do Hospital de São Marcos para o Hospital de São João, com a bala alojada na região cervical. «O gajo só berrava. Ficámos lá uma noite a guardá-lo, à espera do neurologista. Os outros tipos do grupo telefonaram para o hospital e ameaçaram: “Ai prenderam o Eduardo? Então esperem, que vamos aí fazer uma festa.. E eu respondi: «Quanto mais depressa, melhor”», conta Lopes Duarte, da PJ. «Disse para colocarem um carro escondido nos arbustos, à entrada do hospital, mas nada aconteceu. No dia seguinte, às 8 horas, tentámos tirá-lo dali. Ele tinha o projétil colado à coluna, mas acabaram por levá-lo de avião militar para Caxias.»
A esposa visita-o na cadeia. O irmão «Chico» leva duas pistolas, com a finalidade de tentar passa-las a Eduardo, vá lá saber-se porque artes, mas não consegue. O detido abeira-se das grades e diz aos familiares, baixinho: «Acerca do alemão [Wallraff?] ainda não me fizeram perguntas nenhumas.» Durante a viagem, a mulher contara ao cunhado que Eduardo lhe transmitira que «o senhor das armas» podia ficar descansado, pois ele não bufava. No processo do «Corrécio», há referências a contrabando de liamba e de armas.
O inspetor da PJ manterá diálogos curiosos com o criminoso, nas vezes em que ele esteve «dentro» na zona do Porto. Eduardo ligava da prisão e dizia: «Quero falar consigo.» Lopes Duarte mandava buscá-lo. «Vais contar-me os assaltos que tens feito?», desafiava. «Eu nunca roubei nada a ninguém», resmungava ele. «Você é que mandou a minha fotografia para França ,para me tentar prender. Eu estava lá numa obra, vi a polícia e pensei logo: “É para mim.” Quando chegaram perto, dobrei a pálpebra do olho e não me reconheceram.» Lopes Duarte pediu-lhe para fazer o mesmo à sua frente. Assim foi. «Era um gajo bruto, mas espertalhão. Dava a volta à pálpebra e nem parecia o mesmo», sorri o ex-elemento da Judiciária.
Transferido de Caxias para Custóias a 11 de setembro de 1976, sob fortes medidas de segurança, Eduardo ficou à espera do julgamento,por posse de arma de guerra, no Tribunal Militar do Porto. A dois dias de se sentar no banco dos réus, o Diário do Minho, propriedade da diocese de Braga, publicou uma carta onde Eduardo se confessava «acérrimo defensor da democracia e do povo», «antifascista» e «anticomunista». Na missiva, rejeitava também qualquer ligação ao «terrorismo bombista». E justificava-se: «O Corrécio não pôs bombas, não atentou contra a vida de quem quer que fosse.. Eduardo criticava os «falsos amigos do povo, aqueles que têm na manga o plano de destruição de Braga, da sua Igreja e do seu Povo», afirmando-se disposto a lutar por um futuro «onde não haverá lugar para o ódio, para a violência e para o oportunismo vermelho». A direção do jornal aproveitava a deixa e deitava-lhe água benta: «Não terá havido o propósito de queimar um homem que se tornou incómodo a certa corrente política e, através dela, atingir a reputação de pessoas cuja voz há a decisão clara de fazer silenciar?», perguntavam os responsáveis editorais do periódico de inspiração cristã.
A 13 de outubro de 1976, Eduardo apresentou-se no tribunal de casaco azul com emblema do CDS na lapela, calças brancas justas, cabelo «à francesa» e barba «passa piolho». O seu advogado foi Soares da Silva, também defensor de Ramiro Moreira no processo da rede bombista. Entre outras coisas, descobrira-se que também transacionava cheques de quantias elevadas passados ou avalizados por figuras predominantes do norte.
Testemunhas louvaram então o trabalhador pobre, bem comportado e generoso: «Devemos-lhe muito, ele é que nos defendeu dos vermelhos», aludiu-se. O juiz, porém, não se comoveu: Eduardo foi condenado a dois anos e quatro meses de prisão.
O «Corrécio» ainda tentou fugir do Hospital de Santo António, onde se deslocara, escoltado por dois polícias, para tirar uma radiografia à coluna vertebral. Tentou a sorte com a cumplicidade de amigos, que, no interior daquela unidade de saúde, lançaram um pó indeterminado aos olhos dos guardas. Eduardo ainda correu em direção ao jardim do Carregal, mas foi apanhado. O ensaio não seria em vão e resultaria em pleno a 30 de março de 1977, quando o Supremo Tribunal Militar mandou repetir o julgamento. Eduardo apresentara-se de novo janota, com o mesmo pin do CDS e outro alusivo ao ELP, ocultado na aba do casaco. Para o seu advogado, não teria ficado «nada mal» se algumas «pessoas ilustres» de Braga tivessem ido a tribunal depor, mas Soares da Silva reconhecia que o momento histórico era outro.
Às 22 horas, durante o intervalo que antecedeu a comunicação da pena, Eduardo aproveitou uma distração policial e, com ajuda do exterior, entrou num Fiat 124 que o aguardava e saiu de cena. A sentença, lida à mesma, foi pronunciada já a madrugada ia alta: dois anos de prisão.
Durante mais de um ano, Eduardo passeou por Braga, sem ser importunado.
Foi visto numa festa do CDS na Quinta da Conceição, em Leça da Palmeira, com a presença de Freitas do Amaral e Adelino Amaro da Costa, e noutra em Famalicão, quando era suposto estar preso, pois andava a monte. Mas, no verão de 1977, o bando dos «Corrécios» começara a ser desmantelado, com quase uma vintena de membros presos no espaço de semanas. Por essa altura, os jornais fixam várias alcunhas: Traquina, Bigodes, Marinheiro, Algarvio, Elias, Fininho, Carias, Blaik e Lopinho.
A 15 de outubro daquele ano, Eduardo cai de novo na teia da Judiciária. Desta vez, a detenção é dificultada por ação dos moradores do bairro onde reside, que, munidos de pedras e varapaus, tentam dar-lhe fuga. Os polícias descobrem-no, por fim, escondido entre as saias de três mulheres que fingiam almoçar tranquilamente em casa, indiferentes ao aparato policial e aos disparos. Ao tentar escapar, o «Corrécio» é ferido a tiro numa coxa e ainda ouve a mulher dizer: «Não poupes ninguém, Eduardo, diz tudo o que sabes!»
Convocado a depor no processo da rede bombista, Eduardo foi ouvido a 9 de fevereiro de 1978 em Lisboa. Apareceu de madeixa rebelde sobre a testa, pés virados para o lado, polegares no cinto, postura desafiadora, expressão de desprezo. O cowboy minhoto ao serviço da contrarrevolução estava, no entanto, falho de memória: esquecera-se de crimes, nomes e locais. Desconhecia assaltos, bombas, tiroteios em que era identificado, proclamando a sua inocência. Perante tal apagão, os advogados da acusação, irónicos, ainda se questionaram se ele viveria mesmo em Braga…
A 27 de maio de 1978, num processo à margem da rede bombista, Eduardo foi condenado a quatro anos e oito meses de prisão por assaltos e agressões. Absolvido de alguns dos crimes após recurso, recolheria na mesma a Custóias para cumprir outras penas não expiadas. Foi aí que o antigo inspetor da PJ de Braga, Eurico Pereira, o encontrou:
– Quando eu sair daqui vai haver muito sangue – prometeu Eduardo.
– Ai vai? Olha, então vê se atiras primeiro. Porque se não atirares primeiro, já sabes o que te acontece.
– O que é que acontece?
– Se me matares, a minha mulher e os meus filhos continuam iguais e recebem uma pensãozita. Tu vais preso por homicídio qualificado e nunca mais passam cartucho à tua mulher e aos teus filhos. Mas se eu te matar a ti, sou promovido. Escolhe.
Eurico virou as costas e foi-se embora.
Anos mais tarde, encontraram-se perto do bairro de Santa Tecla: «Desculpe lá aquela coisa de Custóias», disse-lhe Eduardo. «Oh pá, eu nunca mais pensei nisso…»
Perdões à parte, a capital minhota continuaria a assemelhar-se ao Texas até ao início da década de 80. «Os Corrécios dedicavam-se a roubos e até assaltavam bombas de gasolina no Porto, com caçadeiras de canos serrados», lembra Eurico. «Em Braga, era um pandemónio. Havia medo, medo!», obra e graça do bando onde pontificavam «Eduardo, Chico, Berto Traquina, Zé Liamba (irmão de um padre) e Fernando Bigodes. Eram um terror!»
A 12 de março de 1983, elementos da quadrilha foram julgados, no Tribunal de Vila Verde, por crimes que iam do furto qualificado ao atentado ao pudor, processo desencadeado com base nas investigações conduzidas pela PJ de Braga. Foram todos condenados, entre os quais o líder, Eduardo. Até aqui, nada de novo. Curioso só mesmo o nome de um dos advogados de defesa: Manuel João da Palma Carlos.
Socialista, opositor da ditadura, antigo defensor de presos políticos nos tribunais plenários e advogado de Champallimaud no caso da «Herança Sommer», o irmão do primeiro chefe de Governo da democracia, Adelino da Palma Carlos, ocupara os cargos de procurador-geral da República, presidente da RTP e embaixador em Cuba. Que fazia ele naquele processo, a defender aquele homem?, questionaram-se algumas almas de esquerda da região, sem obter resposta.
Eduardo, esse, cumpriu durante décadas diversas penas por crimes variados. Em alguns casos, fugiu. Noutros, resignou-se. Do que nunca se livrou foi da fase lendária de 1975/1976 quando protagonizou, a preço de saldo, o combate ao «comunismo.» Nos últimos anos, davam-no como sócio de casas de alterne no Alto Minho.
Quando chegou ao Porto, com que ideia ficou do trabalho que a PJ vinha fazendo em relação à rede bombista?
Os homens estavam tolhidos, não sabiam o que haviam de fazer… O Ramiro já sabia que estava a ser seguido, ia ter com eles aos carros e dizia para o deixarem em paz. Não podiam apanhá-lo em flagrante e também ninguém ia pôr uma bomba com a polícia atrás. Os bombistas eram seguidos e sabiam. Era caricato… O Ramiro era cheio de bazófia também, mas era o mais inteligente de todos.
Como se preparou a detenção deles?
Chegou-se ali ao final de julho de 1976, estava tudo a preparar-se para ir de férias, e eu próprio já tinha mandado vir a minha mulher e as minhas filhas para fazerem férias no Hotel Vermar, na Póvoa, para pelo menos estarem perto. Tudo pago pela PJ…
Mas não havia falta de meios?
Sim, mas passou a haver dinheiro e começámos a alugar carros. Até era melhor, porque eram descaracterizados. Os gajos que estávamos a investigar sabiam tanto como nós. Para baralhar, cheguei a estar registado em dois hotéis simultaneamente, no Grande Hotel da Batalha, no Porto, e no Vermar, da Póvoa. Depois dormia onde queria. Mas quando o pessoal se estava a preparar para ir de férias, liguei ao coronel Ramos e disse que só havia uma hipótese: como só por milagre íamos apanhar alguém em flagrante delito, podíamos, pelo menos, prendê-los por posse ilegal de armas. E depois de eles estarem dentro, logo víamos o que é que dava… Ele achou boa ideia. Naquela altura, o que era importante era apanhar armas e eventualmente explosivos. Escolhemos os gajos e decidimos fazer buscas: o Ramiro, o Manuel «Águia», o Teixeira, o Rangel, o Gonçalo, que era um choninhas. Fomos pedir mandados aos juízes em várias comarcas. E às sete da manhã lá foram… Eu não fui, fiquei à espera. Os resultados não foram extraordinários, mas foi o suficiente para os meter dentro.
O que se passou a seguir?
Enquanto não veio o juiz de instrução Pereira Cabral, dei ordens para que ficassem todos separados, não os queria juntos. Mas havia dificuldade de celas, as da PSP eram muito velhas… Logo por sorte – na altura achei que era azar – a pior cela era do Ramiro Moreira (risos). Era um cubículo com três metros de comprimento, com a largura de uma porta, e um balde para mijar. Telefonam-me a dizer que o gajo estava muito excitado, que ninguém o conseguia segurar, aos gritos e não sei quê, e decidi lá ir. Foi então que o conheci. Mando abrir a porta, que nem grades tinha. Ele vem à porta e na cela em frente está o Manuel Teixeira Gomes. Eles diziam que não se conheciam, mas o Teixeira diz logo: «Olá Ramiro, estás bom?» Então ninguém se conhecia e agora já se conhecem? (Risos) Qual é o seu problema, perguntei ao Ramiro. «Ah, já viu as condições em que eu estou? Já veio aí um gajo da PSP para me matar.» Bem, a verdade é que ele apanhou um susto qualquer. «Mas vão-te matar porquê?» «Porque eu sei muito e têm de me calar.» Disse-lhe: «Então vamos os dois, sossegadinhos, conversar. Vais-me contar essas histórias todas e assim passamos os dois a saber tudo e já têm de matar dois: a ti e a mim.» E ele concordou.
Onde conversaram?
Fomos conversar para uma camarata que havia por lá e ele começou-me a contar algumas coisas. É quando me diz: «Ó capitão, já agora, vocês têm de lá ir a casa, porque ainda tenho lá uns explosivos e alguém pode ter algum acidente.» Estava tudo escondido debaixo dos lava-louças. É então que ele me dá a chave de casa.
Como surge a ideia do gravador?
Pedi aos tipos da Judiciária para me arranjarem um gravador, daqueles trambolhos de fita, e disse ao Ramiro: «Se não te importas, para eu não estar agora a dar cabo da mão, vamos gravar.» E ele disse que não se importava. Eu sabia lá se as gravações serviam ou não como prova ou tinham de cumprir determinados pressupostos legais. Aliás, para mim é outro imbróglio sem sentido, porque aquilo que ele disse na gravação acabou por dizer depois ao juiz de instrução e foi incluído no processo.
Quem mais participou na gravação?
O Serradas Duarte, comandante da Marinha, da DINFO. Eu fiz poucas perguntas. Quem mais sabia daquela história toda da rede bombista não era eu. Se ouvir as gravações com atenção perceberá que quem faz mais perguntas é ele.
Não participou mais ninguém?
Só eu e o Serradas Duarte. O pessoal da PJ não deve ter gostado muito, tenho consciência disso, mas também não podia transformar aquilo numa feira. Mas apressei-me a dar-lhes conta do que se tinha passado.
Nessa altura, ouvimos os três seguidos: o Ramiro, o Teixeira e o Manuel «Águia». Foi o Ramiro que convenceu os outros a falar. Disse-lhes: «Eu já contei tudo, é melhor vocês contarem tudo também.»
Nunca lhe ocorreu que o juiz de instrução deveria estar presente durante a gravação?
A mim só me chateou uma coisa: o Serradas Duarte já sabia tudo o que eu só vim a saber na altura da gravação. O Serradas sabia mais do que o Ramiro, mas mandaram aqui este camelo investigar o que já sabiam. Mais tarde, quando foi pedido o depoimento do Serradas Duarte no tribunal, ele recusou-se a ir dar a cara.
Oficial de informações durante 12 anos (1976-1988), Serradas Duarte era 1.º tenente da Marinha quando foi chamado, em fevereiro de 1976, a criar e chefiar a Repartição E, o Departamento de Pesquisa da DINFO (Divisão de Informações Militares). A tutela daqueles serviços de «inteligência» cabia então, por inerência, a Ramalho Eanes, então líder do Conselho da Revolução e Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas, em cujo gabinete se reunia um grupo de oficiais apostados em deitar água na fervura do «Verão Quente». Além das informações privilegiadas provenientes dos meios políticos, Eanes tratava os assuntos sensíveis da DINFO com o coronel Artur Beirão e, numa base mais privada e informal, com o oficial de Artilharia Lencastre Bernardo, que viria a ser integrado na repartição de contrainformação e, mais tarde, nomeado diretor-adjunto da PJ.
Os homens da DINFO conseguem penetrar clandestinamente na rede bombista, com relativa facilidade, logo nos primeiros meses de 1976. Serradas Duarte considerou a ameaça de extrema-direita «diminuta», se comparada com o «terrorismo de extrema-esquerda». As informações que lhe chegavam da equipa – que rondava, no início, as vinte pessoas – atribuíam o bombismo a «uns aventureiros» sob a batuta de três ou quatro figuras de direita «com alguma capacidade financeira». Quando Ramiro Moreira é detido, Serradas Duarte voou para o Porto e foi encontrá-lo preso na esquadra da PSP. «O homem estava extremamente perturbado, dizia que ia ser morto» (DINFO – Histórias Secretas do Serviço de Informações Militares, de Paula Serra, 1998). Nos calabouços, e na presença de Ferreira da Silva, Serradas Duarte garante ter ouvido Ramiro negar tudo. «Tive de lhe mostrar, lentamente, que não valia a pena fazê-lo, já que eu estava a par da história toda.» Na verdade, a DINFO estava na peugada do bombista e conhecia todos os seus passos há meses.
Arrolado como testemunha na fase do julgamento, a acusação acabaria por desistir da sua presença em tribunal, à última hora. Serradas Duarte tinha conseguido manter-se quase incógnito naquele processo e assim passou à História.
Quando Ramiro começou a contar tudo, qual foi a sua reação?
Numa situação dessas, um gajo não fica só pasmo. Fica pasmo e cheio de medo. Eu estava a entrar num campo que nunca supus que fosse real. Fui apanhado de surpresa.
É verdade que, a dada altura, parou a gravação, saiu da sala e desabafou «este gajo está maluco!»?
Quando ele começa a falar do envolvimento do Mota Freitas e do segundo comandante da PSP, deito as mãos à cabeça: «Ei pá, onde eu me vim meter… Agora é que isto vai ser bonito!» Lembro-me de que parei a gravação e fui desabafar com os gajos da Judiciária, mas para eles também já não era grande novidade… Fiquei varado com o que estava a ouvir. No início ainda pensei: este gajo está páqui a meter toda a gente, a ver se safa… Mas a dada altura, eram tantas e tão poucas, com tantos pormenores, que acabei por dar a mão à palmatória. O gajo estava mesmo a falar verdade! E veio a confirmar-se ainda mais quando vamos ao comando da PSP do Porto e apanhamos lá armas iguais às que ele tinha em casa. Não há coincidências. Eram armas que o Ramiro tinha trazido de Espanha e tinha ido deixar à PSP. O Teixeira Gomes e o Manuel «Águia» também confirmaram os atentados bombistas em que tinham participado.
Diários do Capitão, 28 de setembro de 1976. Declarações perante o juiz de instrução Dário Rainho, na PJ do Porto. «(…) Sugeriu então o declarante que fosse feita uma gravação da história que ele [Ramiro Moreira] queria contar, antes de ser interrogado pelo juiz de instrução, fazendo-lhe ver que tal gravação não teria validade legal, ao que o Ramiro acedeu de bom grado (…) O declarante solicitou então que um técnico desta polícia montasse um gravador num gabinete (…) após o que, e depois do Ramiro ter jantado no piquete desta subdiretoria, começou o mesmo a prestar declarações espontaneamente e sem qualquer pressão ou coação, na presença do declarante e do 1.º Tenente Serradas Duarte (…) Quando o Ramiro, após poucos minutos de declarações, cita o nome do major Mota Freitas, o declarante sentiu-se mal disposto por se aperceber das implicações que aquela referência teria e saiu da sala por poucos minutos para acalmar e tomar ar (…) Finda a gravação das suas declarações, o Ramiro perguntou ao declarante o que é que iria dizer perante o senhor juiz de instrução, ao que o declarante lhe respondeu que não era a pessoa indicada para lhe dar qualquer conselho e que ele era maior e vacinado e, com o que havia confessado, de certo apanharia uma pesada pena, talvez de muitos anos de prisão (…) Ele é que tinha de decidir aquilo que queria declarar ao senhor juiz de instrução e se era ou não conveniente para ele assumir sozinho as responsabilidades dos crimes confessados (…) A confissão espontânea e a ajuda que ele pudesse dar e que levasse à descoberta de outros agentes dos crimes eram atenuantes importantes que seriam levadas em consideração no respetivo julgamento. Então o Ramiro, parecendo ter aceitado a ideia de confirmar perante o senhor juiz de instrução as declarações que havia gravado, repetindo-as portanto para os autos, referiu ao declarante que, em tal caso, teria de falar com o Teixeira e com o Manuel Águia, uma vez que entre os três havia um pacto pelo qual todos se tinham comprometido (…) Tinha pois necessidade de (…) lhes dizer que já havia contado tudo, libertando-os assim do compromisso (…) A gravação das declarações do Ramiro havia durado cerca de três horas (…).»
Com que ideia ficou de Ramiro?
No fundo, tinha bom íntimo. Mas era um ídolo com pés de barro, tinha medo. De tudo e de todos. Um gajo que se assusta quando é preso e atira logo todos os nomes para o barulho quer é salvar a pele. Ele deve ter pensado assim: meto esta malta toda do dinheiro ao barulho e alguém me há de safar. Como safaram, aliás… Na gravação acaba por reconhecer que estava muito arrependido daquela bomba em São Martinho do Campo. Disse que havia uma bilha de gás que não tinha visto. Essa bomba tinha sido uma encomenda do comendador Abílio de Oliveira, a quem eu estava ligado…
Como assim?
O comendador Abílio de Oliveira era meu amigo. Agora imagine a situação em que um gajo fica…
De onde vinha essa relação?
Olhe, por via de outro amigo, cujo pai era sócio da fábrica Flor do Campo. O comendador Abílio, quando ia a Lisboa, era convidado para todas as festas a que eu ia. A minha intimidade com ele não era muita, mas com o sócio, meu amigo, era.
Como geriu isso?
Quando foram emitidos os mandados de captura, chamei a malta da Judiciária e disse: «Para que conste, sou amigo do Abílio de Oliveira. Não vou usar telefones, por isso façam o que têm a fazer, que eu vou ficar aqui com doutor Guimarães Dias [responsável pela subdiretoria da PJ do Porto]. Se alguma coisa correr mal, não é culpa minha.» O comendador nunca mais me falou na vida.
Que opinião tem do António Silva Santos, outro dos detidos?
O Silva Santos participou em poucas bombas. Terá coordenado algumas coisas, terá recebido ordens, mas até se borrava todo se tivesse tido uma bomba nas mãos. Via-se mesmo que era um artista de circo… Já o Júlio Regadas não. Quando entrou na viatura militar de caixa aberta, daquelas com capota de lona, já lá estavam os outros. E ele deu logo o recado, de braços no ar: «Eu aqui não conheço ninguém.»
Houve mesmo uma rede bombista?
Não há qualquer dúvida. E o Mota Freitas era um dos homens que estavam à frente daquilo. Ele era o veículo que o cunhado Joaquim Ferreira Torres usava para chegar onde queria. Como o Ramiro diz na gravação, o que interessava era haver confusão, para os grandes negócios de armas, de droga, de divisas, etc. continuarem. O que interessava era ter a polícia ocupada com as bombas, para eles andarem nos seus negócios.
Qual foi o papel de homens como Alpoim Calvão e outros nisto?
Há piores do que o Alpoim Calvão… Não se esqueça de que a Polícia Judiciária Militar dependia diretamente do Conselho da Revolução, através do Costa Neves. Ora o que não fez qualquer sentido foi ver, durante as investigações, pelo menos dois conselheiros da revolução reunidos em casa do Valentim Loureiro com os bombistas…
Vítor Alves e Canto e Castro…
E foram lá para demover os bombistas de pôr bombas, disseram! Pelo amor de Deus! Eu disse ao Costa Neves: «Se já havia conselheiros que sabiam quem eram os bombistas, porque é que me mandaram para o norte fazer figura de parvo atrás deles? Se sabiam, metiam os gajos dentro e acabou-se!»
O Mota Freitas só recebia ordens de Joaquim Ferreira Torres?
Veja até que ponto eu era ingénuo: quando comecei as investigações sobre a rede bombista, o Mota Freitas foi uma das pessoas a quem fui pedir ajuda. E ele disse-me logo que daria toda a colaboração de que precisasse. Afinal, era ele que estava por detrás daquilo tudo! Estou convencido de que até o Pires Veloso sabia de tudo. E apadrinhava. O que me fez confusão, e nunca tive resposta para isso, foi o facto de só depois de 25 de novembro de 1975 terem explodido as bombas mais violentas. A única versão que tenho é a do Ramiro, que diz que era preciso haver confusão e que eles queriam tomar o poder. A ideia era instaurar um regime de extrema-direita e acabou-se. Se conseguissem, não ameaçavam, como fez o Otelo: matavam primeiro e ameaçavam a seguir. O grande mal foi o Otelo não fazer aquilo que devia ter feito, que era pô-los no Campo Pequeno. Já não apareciam aí esses bandidos que nos têm levado à falência. O que temos hoje nem sequer é direita. São gatunos profissionais.
Que ligações tinha o Mota Freitas ao Conselho da Revolução?
Eram todos contemporâneos deles na academia militar, tudo amigos, pá! E fé em Deus!
As ligações do Mota Freitas à rede bombista tinham portanto de ser conhecidas dos conselheiros da revolução…
Claro, era impossível não saberem. A rede bombista interessava a muita gente.
Diários do Capitão, 10 de setembro de 1976. Informação oficial em resposta a um requerimento de Mota Freitas. «A partir de informações prestadas pelo detido (…) Ribeiro da Silva, preso cerca de quatro meses antes por implicação no famoso assalto à Standard Eléctrica, a PJ possuía já a identidade de um grupo atuante nos “atentados bombistas”, bem como de alguns dos seus mentores (…) Ribeiro da Silva teria referido a ligação do Sr. Major Mota Freitas ao grupo, facto que a PJ achou inverosímil e recusou admitir, devido à sua origem duvidosa, omitindo o seu nome na sua informação escrita (…).»
Conheceu o cónego Melo?
Já não me lembro através de quem, mas a determinada altura foi-me apresentado o doutor Avelino Barroso, um advogado de Braga que era amigo do cónego Melo. Convidou-me para jantar em casa dele com o cónego. Pesei as coisas: o que é que me podiam fazer? Nada. Pensei: «Vender-me, não me vendo. Baterem também não me batem. Se assim fosse, não tinham utilizado terceiras pessoas.» Disse: «Está bem, vou.»
O que é que o cónego Melo queria?
Queria, no fundo, saber o que a gente sabia acerca dele. Ele estava envolvido na rede bombista até ao tutano. Mas pouco ficou a saber…
Diários do Capitão, 15 de setembro de 1976. Encontro na boîte Cova da Onça, em Lisboa. «Por intermédio dum amigo meu, fui apresentado ao Dr. Avelino Barroso Pereira, residente em Braga (…) Segundo aquele senhor, que se diz grande amigo do sr. Ferreira Torres e do sr. Cónego Melo, havia dúvidas de que eu seria comunista, facto que ele próprio e o sr. Cónego já tinham confirmado ser mentira… Assim, poderia eu ficar descansado que o meu nome iria ser reabilitado no Norte e que em breve seria desfeita a minha imagem de comunista (…).»
Diários do Capitão, 16 de setembro de 1976. «Fui convidado pelo mesmo senhor [Dr. Avelino Barroso] a um almoço no Hotel Sheraton (…) informando-me que já tinha contactado com o Sr. Ferreira Torres acerca da nossa conversa do dia anterior e na qual desfizera, perante aquele, a minha imagem de comunista… Mostrou-se ainda muito interessado em saber se o Ramiro tinha referido alguém de Braga.»
Diários do Capitão, 17 de setembro de 1976. «Após contacto telefónico e a seu pedido, tive mais um encontro com o mesmo senhor no Hotel Altis, antes da sua partida para Braga. Começou por me dizer que, de conivência com o comandante Baltazar [Ferreira, diretor do Forte de Caxias], “pessoa muito simpática e querida dos detidos”, teria visitado sem credencial o detido Ferreira Torres no próprio gabinete do comandante, com o qual trocou diversos pormenores a meu respeito (…) Recomendou-me o perigo que se corre em averiguar-se crimes políticos (…) Aconselhava-me assim a ter cuidado e a não me meter nisso. Já no aeroporto referiu-me que fora o Norte quem salvou o país do comunismo e que sem ele (Norte), o general Eanes nunca seria o P.R. Para finalizar, acrescentou ainda que em 25Nov76 o Norte estivera de prevenção e ao “toque dos sinos” a população em 5 minutos estaria nas ruas e defenderia o País da ditadura. Antes de embarcar combinou comigo um jantar em Braga (…) na sua casa e com a presença do sr. Cónego Melo.»
Diários do Capitão, 22 de setembro de 1976. «Jantar em Braga em casa do Dr. Barroso, com a presença do Sr. Cónego Melo. Muita cordialidade. Muito “à-vontade” (forçado!) de ambos, muito desejo de saber coisas do processo, com perguntas desinteressadas e sub-reptícias, principalmente para saber se havia alguém de Braga incriminado. Descreveram-me episódios ocorridos em Braga, conhecimentos do Cónego Melo com o Ramiro Moreira e descrição da prisão do Major Mira Godinho e do 1.º Tenente Benjamim. No final, e já de madrugada, o Sr. Cónego Melo ofereceu-me um terço e duas placas comemorativas do congresso de Braga.»
Diários do Capitão, 24 de setembro de 1976. «Telefonema de Braga do Dr. Avelino Barroso, convidando-me para novo jantar em sua casa, com o Dr. [Dário] Rainho (…) Declinei. Focou que havia telefonado para Caxias falando com o detido Ferreira Torres, tendo “segurado” dois requerimentos (um de 5 folhas, dirigido a altas entidades e muito explosivo), que estavam para ser apresentados. Declarou ainda estar o Ferreira Torres ciente da minha “identidade” e mostrou interesse em conhecer-me. Também o Sr. Major Mota Freitas está arrependido da “campanha” contra mim havida. A Imprensa também irá parar.»
Diários do Capitão, 29 de Setembro de 1976. «No bar Ziriguidum, no Porto, onde me encontrava com o Alferes Apetato, o jornalista [Alfredo] Mourão, um médico e a locutora da TV Manuela de Melo, fui contactado por um amigo meu de Lisboa e ligado ao Sporting, o qual fez questão em que eu tomasse uma bebida com ele e com o Capitão Valentim Loureiro, que mostrara muito interesse em conhecer-me (…) Acedi, estando ainda presente nessa mesa um dirigente do Boavista de nome Pinto de Sousa (…) Valentim Loureiro mostrou-se preocupado comigo, pois estivera no almoço de Vigo a que o Ramiro se referira e já há muito que estava à espera que o fossem prender. Depois passou a atacar-me, dizendo-me que quem me deu aquela missão fora com o intuito de me f…. e para eu não me deixar ir nisso, pois quem ficava tramado era eu. O tom geral da conversa foi sempre esse e ficou assente um almoço privado em sua casa no dia seguinte com a presença do Major [Sampaio] Cerveira
[segundo comandante da PSP do Porto]
, o que veio a acontecer. Aí continuou a dizer-me que eu tinha sido enganado e que não podia aceitar que eu andasse a f…. camaradas (…) O Major Cerveira mostrou apoiar o Valentim, insistindo na tese de que deveria olhar o processo sobre dois prismas distintos: até 25Nov75 e após. Acabei por lhes dizer que trabalhava para uma PJ e que ali se analisavam os crimes em si e disposições legais que os condenam e que deixávamos a política para os políticos, o que parece não os ter convencido, avisando-me sempre que eu estava a ser enganado e que quem se lixava depois era eu (…).»
Diários do Capitão, 1 de outubro de 1976. «Telefonema de Braga do Dr. Avelino Barroso, informando que o Sr. Major Mota Freitas e cunhado [Ferreira Torres] “tinham feito as pazes comigo”, pois estavam “enganados” a meu respeito e até estão arrependidos da maneira como tinham reagido, e até gostariam de falar comigo.»
Diários do Capitão, 8 de outubro de 1976. «Telefonema de Lisboa do Dr. Avelino Barroso, marcando um encontro pelas 23h00 no Bar Tamila (…). Cheguei primeiro ao local encontrando no local o coronel Jaime Neves, acompanhado do Major (ou Cap. Coias), tendo o primeiro dito para mim que “a malta anda chateada contigo”, o que me levou a explicar-lhe toda a isenção e honestidade que tinha posto no processo, tal como costumo pôr em todos os atos que pratico. Apareceu depois o Dr. Avelino Barroso (…) Mostrou-se preocupado, informando-me que afinal o processo estava a andar para trás e que o Ferreira Torres já estava a ficar impaciente, pois julgava ser solto (…) Desculpei-me dizendo que pouco sei do processo desde que abandonei a instrução (…) Referiu-me que podia ter confiança no Ten-Cor. Costa Neves porque este era credor dela, também junto dele e do Sr. Cónego Melo (…) Levei o Dr. Barroso ao Hotel Altis e segui para a boîte Cova da Onça (…) Ali, pelo agente Sousa Martins, da Judiciária, e na presença do ex-chefe da
[antiga polícia política]
DGS, foi-me dito que eu fora enganado pelos comunistas da PJ do Porto, todos ligados ao MDP/CDE. Referiu que fora a brigada dele quem obtivera do José Cruz Ribeiro da Silva os primeiros elementos sobre a rede bombista e que logo se afastaram daquilo quando viram que por detrás estava um “indivíduo de estrelas do Norte e um de batina preta e com muita força”. Voltou a insistir que eu teria sido enganado e que fizera o jogo dos comunistas da PJ do Porto e que agora ia sofrer as consequências.»
Diários do Capitão, 11 de outubro de 1976. «Telefonema de Braga do Dr. Avelino Barroso. Pretendia saber se haveria mais mandados de captura, pois lá em cima constava-se que sim e que um seria o Cónego Melo. Que este até já tinha uma carta escrita para ser publicada após 48 horas depois da sua detenção. Disse-lhe nada saber sobre o assunto, mas que não acreditava. À despedida, disse-me que tivéssemos cuidado e que não prendêssemos o Sr. Cónego Melo, pois 48 horas depois, de Rio Maior para cima, estariam mais de um milhão de pessoas prontas para o libertar.»
Diários do Capitão, 16 de novembro de 1976. Reunião realizada na sede do Serviço de Polícia Judiciária Militar (SPJM). Assunto: Investigação dos atentados bombistas. O tenente-coronel Costa Neves, do Conselho da Revolução e superintendente do SPJM, refere que a finalidade é «assentar nas linhas de ação futuras e ajustamento da ligação da PJ e PJM no sentido de se aprofundarem, tanto quanto possível, as investigações dos atentados bombistas, dada a implicação que tais atos poderão ter na destabilização política do País». De seguida, acentuou o apoio do Presidente da República [Ramalho Eanes], bem como «a sua preocupação» com o «colapso» que parece ter ocorrido no avanço das investigações.
Júlio Vidigal, diretor da Polícia Judiciária, manifestou a intenção de levar a investigação «até às últimas consequências», embora tenha reconhecido um certo «arrefecimento» ou «arrastamento», não determinados intencionalmente. «Certa marginalização», embora não deliberada, da PJ, «provocou um certo amolecimento ou retração do pessoal investigador e a coloração política que determinados setores têm dado à brigada de investigação da PJ (…) poderia ter contribuído para um certo amedrontamento do pessoal (…)», afirmou.
Guimarães Dias, subdiretor da PJ do Porto, referiu-se «à falta de informação com que a PJ lutou ao longo de grande parte da instrução do processo e aos ataques que a informação social e anónimos vêm fazendo a investigadores, perante a passividade das entidades oficiais». Segundo ele, estes factos e as «libertações “discutíveis” de arguidos têm sido fatores preponderantes na desmoralização que grassa no seio do pessoal investigador sob a sua direcção». Costa Neves disse discordar da manutenção de Mota Freitas no comando da PSP do Porto, anunciando, porém, que «a sua exoneração é, no momento, ponto assente».
Pereira Miranda, Inspetor da PJ, deu conta de um contacto tido em Caxias com Ramiro Moreira, onde aquele referiu que, «por combinação com o detido Júlio Regadas, iria desmentir todas as declarações que tinha feito anteriormente». Aquele inspetor acrescentou ainda, a título confidencial, que elementos na sua posse permitiam supor que haveria «uma rede bombista ativa, com cobertura de pessoal da PJ de Lisboa». O subinspetor Lopes Duarte, da PJ do Porto, referiu, em seu nome e de todo o pessoal, «a sua preocupação pelo curso do processo e a insegurança por todos sentida, que os leva a pôr a hipótese de desistirem, se não forem revistos os meios de atuação e garantida a sua integridade física».
Entre outras coisas, ficou decidido traçar um plano organização conjunto (PJ e PJM) no âmbito da investigação e da permuta de informações.
Conheceu o major Lencastre Bernardo, nomeado para diretor-adjunto da PJ, em novembro de 1976, para supostamente fazer a ligação entre a Judiciária e as outras forças policiais?
Outro amigo do Abílio de Oliveira. Tenho dificuldade em retratá-lo, porque também sou amigo dele.
Ele foi colocado na PJ pelo general Ramalho Eanes para vigiar as investigações sobre a rede bombista?
(Longo silêncio). Não tenho dúvidas, ele ia às reuniões todas, era um informador do Eanes. Mas o Lencastre Bernardo não escondia isso. O Eanes era uma figura muito controversa dentro das Forças Armadas, mas foi um bom Presidente da República. É uma figura ímpar, soube pôr os valores sociais à frente dos valores pessoais, deu lições nisso.
Mas voltando ao Lencastre Bernardo… Um dia, estava no gabinete dele e entrou a [jornalista] Vera Lagoa a dizer que o tipo que estava à frente das investigações era um perigoso comunista. E o Lencastre disse: «Mas o Ferreira da Silva é este» (risos). Outro militar também disse que eu tinha andado metido com a PIDE, em Angola. Nunca estive em Angola, muito menos com a PIDE. Dizia-se tanta coisa…
Por que é que este processo foi parar ao Tribunal Militar?
A posse ilegal de armas e explosivos era competência do Tribunal Militar. Mas nos tribunais civis a história teria sido outra.
Porquê?
Porque os tribunais militares estão sempre minados pelos chefes. Fui juiz presidente no Tribunal Militar durante seis anos. Não tive processos do calibre da rede bombista, mas mesmo nos processos de pequena dimensão vinha sempre o telefonema do amigo, do coronel, etc. As pressões num tribunal civil são outras. Num tribunal militar, toda a gente manda. Já viu algum processo de corrupção investigado pela Polícia Judiciária Militar chegar a julgamento? Nem um!
Diários do Capitão, 27 de agosto de 1976. Pela tarde, desconhecidos entraram na residência dos pais de Ferreira da Silva em Lisboa, então ausentes na província. Abriram e despejaram no chão as gavetas da sala e dos dois quartos. Abandonaram objetos de ouro e prata, 40 mil escudos em notas, livros de cheques. Levaram unicamente todas as chaves dos quartos, salas e casas de banho. «Sou levado a admitir que poderei estar a ser alvo de uma ação de intimidação por parte de alguém ligado ao grupo dos responsáveis por atentados bombistas, recentemente presos», escreveu Ferreira da Silva nos seus «diários».
Que tipo de pressões, ameaças ou condicionalismos sentiu durante as investigações da rede bombista?
Aconteceu tanta coisa…Tentaram invadir a casa do meu pai, mas não conseguiram. A dada altura tive de tirar a minha família da Póvoa, à meia-noite, e mandá-la para a casa dos meus pais, numa aldeia da Beira Alta. Eu achava que os tipos eram uns merdas, que lhes dávamos mais valor do que tinham, mas quando se anda no terreno nunca se sabe… Aquela gente não fazia ameaças diretas, mandava conselhos.
De que tipo?
Naquele tempo, eu andava muito na vida noturna. Uma noite estava no Tamila, em Lisboa, muito frequentado por militares. O Jaime Neves ia lá muito. Havia um pianozeco e umas fulanas a «fazerem» uns «cabritos» e tal. Uma noite, um empregado perguntou-me se eu queria ir tomar um copo a outra mesa, com um senhor. E eu disse: «Se o senhor tem alguma coisa para me dizer, que venha ele aqui.» Lá veio um fulano. Queria contar-me a história da morte do Joaquim Ferreira Torres. Era um tipo de um grupo de retornados a dizer-me quem tinham sido os tipos que mataram o Ferreira Torres.
E quem foram?
Foram os gajos do Esquadrão Chipenda. Esses gajos eram pagos e sustentados pelo Ferreira Torres. Ele deixou de lhes pagar e de os sustentar e os tipos fizeram-lhe a folha. Isto foi a história que o gajo me vendeu. Não me lembro do nome do gajo, mas ele próprio pertencia a esse grupo. Esses gajos sabiam a minha vida toda, ao pormenor. E isto era também uma forma de me avisar.
A nível político também tentaram condicioná-lo?
Sempre me apelidaram de comunista. Desde essa altura. Ainda hoje há filhos da puta que são capazes de pensar nisso! Se fosse comunista, não me incomodava, mas não sou. Estava na Divisão de Pessoal do Estado-Maior General das Forças Armadas e precisaram de um oficial de segurança para manusear a correspondência classificada. Tinha a classificação mais alta nessa área, NATO e afins. Mas a proposta para a minha nomeação foi rejeitada pela DINFO. Por causa das minhas companhias, diziam. O que tinha sido? A minha mulher era enfermeira e, durante uma formação, ela e outros foram visitar o serviço nacional de saúde da Checoslováquia. Para beneficiarem das viagens e das instalações dos checos tiveram de se inscrever na Associação de Amizade Portugal-Checoslováquia. Ou seja, para eles, estava casado com uma perigosa comunista. A minha mulher teve de arranjar uma série de documentação para explicar o caso e limparem-me a ficha. Mas o pior é que um gajo nunca sabe o que tem a ficha…
E os ataques da Imprensa, de que setores vinham?
Vinha tudo da mesma cambada, das pessoas próximas da direita militar. Dos jornalistas Vera Lagoa, do Nuno Rocha [diretor do semanário O Tempo]… E depois vinham os jornais ligados ao PCP defenderem-me. E eu no meio, calado.
O processo teve dois juízes de instrução: Pereira Cabral e Dário Rainho. Que diferenças houve entre um e outro?
Nunca gostei de deixar coisas pendentes. E o Pereira Cabral fazia-me impressão. Para mexer uma pata demorava um quarto de hora a pedir autorização à outra. Eu só queria ver aquilo a andar depressa, mas mal adivinhava o que ia suceder. Hoje reconheço que o processo da rede bombista teria sido diferente se o Pereira Cabral tivesse sido o juiz de instrução até ao fim. Estou à vontade, porque fui um dos culpados de ele se ter ido embora. Telefonei ao coronel Ramos e disse-lhe que o juiz era um pamonhas, que não atava nem desatava. E ele: «Ok, então vou mandá-lo recolher e vou mandar para aí o doutor Dário Rainho.»
Mas o problema do doutor Pereira Cabral…
Ele era eficiente, era bom. A justiça é assim que se faz, não é correr, como eu queria. Mas entendia que ele estava a andar devagar e olhe… fiz asneira. Chega o Dário Rainho e muda tudo. Não foi logo, mas foi quase. O Pereira Cabral tinha ouvido os detidos todos da primeira vez. Quando eles vão para Caxias e começam as audições subsequentes, aí é que o Dário Rainho nunca mais parou. Fizeram dele gato-sapato.
Concretize.
Estragou tudo. De forma descarada. Viajei muitas vezes com ele, em serviço. Comecei a notar um exibicionismo repentino. Pouco tempo depois das prisões, apareceu com um carro de matrícula espanhola. Dizia que tinha conseguido a dupla nacionalidade, que já podia comprar carros em Espanha. Não se esqueça de que o Ferreira Torres era um dos homens de peso da banca e da política espanhola, pelo menos na Galiza. Soube mais tarde que o Rainho gostava do jogo, estava cheio de dívidas. Ia jogar para o Clube dos Caçadores, em Monsanto. Os gajos do dinheiro ligados à rede bombista deram-lhe a nacionalidade espanhola, o carro, muito dinheiro. E depois ele libertou-os. Se o processo não mudasse de juiz, não teria o desfecho que teve.
Diários do Capitão, 2 de dezembro de 1976. Em viagem para o Porto, o juiz de instrução Dário Rainho confidencia o seguinte: «Em data recente fora chamado ao sr. Presidente da República [Ramalho Eanes], acompanhado do capitão Bicho Beatriz, tendo então Sua Ex.ª manifestado interesse em saber do estado do processo, especialmente na parte referente ao Major Mota Freitas. Referiu que estava preocupado, pois o Comandante Geral da PSP [General Neves Cardoso] ameaçava demitir-se se até ao dia 13 de novembro não fosse esclarecida a situação do Major Mota Freitas. Acentuou contudo não ser sua intenção pressionar ou aconselhar qualquer atitude ao juiz instrutor, apenas lhe pondo aquele assunto à consideração. Mais se falou na presença, já ventilada em certos jornais, do Major Vítor Alves nas reuniões na casa do Mindelo, pertença do ex-capitão Valentim Loureiro, ficando o mesmo de ser avisado para conversar com o Dr. Juiz sobre esse assunto.»
O resultado dessa reunião do juiz de instrução do processo da rede bombista com o Presidente da República foi o seguinte, esclarece Ferreira da Silva nos seus apontamentos: a 12 de novembro, o Mota Freitas e Ferreira Torres foram postos em liberdade condicional. Entretanto, o Major Vítor Alves chamou o juiz de instrução ao seu gabinete e confirmou-lhe ter estado na reunião no Mindelo, com Alpoim Calvão, «justificando essa atitude como sendo unicamente de procurar convencer o Alpoim Calvão a não fomentar quaisquer atitudes terroristas. Acrescentou ainda que fora com o conhecimento dos restantes conselheiros [da revolução], facto que não consegui confirmar (…).»
Diários do Capitão, 31 de março de 1977. São de novo emitidos mandatos de captura contra Joaquim Ferreira Torres, António Silva Santos, Décio Sottomayor, Abílio de Oliveira e Mota Freitas. «À exceção do último, os restantes fogem para o estrangeiro, pois estranhamente os jornais noticiam a emissão dos mandados, antes mesmo das autoridades que os deveriam cumprir terem tido conhecimento.»
Como avalia o comportamento do comandante da prisão de Caxias [Baltazar Gamito Ferreira, que viria a ser assessor da casa militar e segurança do Presidente da República Mário Soares] com os detidos da rede bombista?
Era amigo dele. Era um tipo sério, mas teve um tratamento de exceção com essa gente. Esses tipos faziam tudo o que queriam lá dentro. Sei isso não só pelo que vi, mas também pelo que ouvi. O Baltazar foi mais tarde convidado para segurança do Mário Soares e teve a hombridade de chegar ao pé do Presidente da República e dizer: «Se o senhor me convida, aceito, mas quero informar que não votei em si.»
Que cumplicidades políticas e partidárias teve a rede bombista?
Pelas minhas ideias e percurso, sou um homem tendencialmente de direita. Mas a minha resposta a essa pergunta é a mesma há 40 anos: a rede bombista deu-me todas as razões para nunca votar PSD. Nem que eu vivesse mais cem anos. Era a pior escória que havia neste País.
Porque diz isso?
Toda a gente que perdeu privilégios com a revolução enfiou-se no PSD. Toda a escória deste País ligada ao capital foi lá parar. A maioria dos retornados filiou-se no PSD, o CDS nem contava. Aliás, ainda hoje somos governados pelos filhos dos retornados. De onde veio Pedro Passos Coelho? Olhe para a composição dos últimos governos de direita e veja de onde veio uma parte dos governantes…
Mas falou-se bastante das ligações do CDS à rede bombista…
O que dominava era a direita trauliteira. Nestas coisas, a esquerda normalmente vai sem cabeça, com o coração. Nem pensa, só faz asneiras. A direita, pelo contrário, pensa em tudo para atingir os seus objetivos. É mais revanchista, tem de vingar-se de qualquer maneira. E se não for num ano, é em dez. Isto, de resto, não é democracia, é uma ditadura de minorias, mas enfim…
Diários do Capitão, 10 de janeiro de 1977. Relatório das investigações a partir do caso das «carrinhas abandonadas», furtadas por operacionais ligados ao ELP e à FNLA para assaltar dependência do Banco de Portugal no Porto, em 1976. «Os indivíduos detidos ou a deter são, na sua maioria, retornados e ligados à FNLA (Batalhão Chipenda) e, segundo se apurou, a “operação das carrinhas” visava o assalto ao Banco de Portugal do Porto (…) Intimamente ligado ao assalto, e com o fim de serem criadas as condições de atuação mais favoráveis à consumação do golpe, estavam previstos vários rebentamentos de engenhos explosivos no quarteirões limítrofes do banco (nomeadamente nos TLP, na sede do PPD/PSD e outros). As próprias bombas que explodiram quando da visita do general Ramalho Eanes ao Porto (CDS, PSD, PS e QG/RMP [Quartel-General/Região Militar do Porto]) fariam parte dos atos preparatórios. Das versões de alguns dos detidos apurou-se que muitos dos intervenientes foram contratados com as seguintes promessas: As extremas-direitas portuguesa e espanhola tencionavam levar a cabo no nosso País uma série de ações violentas que culminariam com o derrube do governo; Para tanto, necessitavam de fundos para a compra de armamento e daí a necessidade do assalto ao banco; Após o derrube do atual Governo (…) voltar-se-ia de imediato para o Ultramar, apoiando e criando unidades de mercenários e retornados, visando um desembarque em Angola: Todos estes factos eram do conhecimento do general Ramalho Eanes. O assalto ao banco acabou por não ter o êxito esperado devido a fatores diversos, no qual não serão alheias as dissidências e a desconfiança entre os vários grupos em presença. No entanto, as averiguações feitas até ao momento levam-nos a supor que esta e outras atuações estarão a correr sob alçada de uma organização internacional de índole fascista. Esta presunção baseia-se nos seguintes argumentos: o golpe do Banco de Portugal deverá ter sido planeado pelo ex-coronel da OAS [Organização Armada Secreta, de cariz paramilitar e clandestino, que se opunha à independência da Argélia], Pierre Laureys, que para o efeito instalou o seu QG no Hotel Infante D. Henrique, no Porto, acompanhado de Michel Winter, ex-capitão da OAS e três argelinos (…) Um dos detidos forneceu-nos passaporte de João Stuart de Vasconcelos (um dos apoios de Pierre Laureys) passaporte de súbdito holandês e com origem desse país embora com outro nome, tendo na altura referido que aquele passaporte faria parte de uma série completa que a I.T.T. teria comprado na Holanda. Segundo esse detido, a fuga de Barbieri [Cardoso, ex-subdiretor da PIDE] do nosso País ter-se-ia efetuado com um destes passaportes (…) Da análise das chamadas telefónicas feitas pelo Jean Michaud constam algumas para as embaixadas dos USA [Estados Unidos da América] e da Bélgica (…).»
Notas do mesmo relatório: o grupo ativo no Porto seria constituído, entre outros, por José Maria Bernardo Pinto [comandante da FNLA, em cuja agenda havia, entre outros, contactos com os serviços de segurança do PS]. O grupo dos mentores e de cobertura: ex-administrador do Banco de Portugal saneado após o 25 de Abril; Pierre Laureys, Michel Winter, João Stuart de Vasconcelos e Jean Claude Michaud. Contactos e cobertura por parte dos chefes das esquadras do Rato e do Palácio da Justiça e outros nas forças policiais para fornecer listas de indivíduos ligados ao PCP em vários concelhos.
Que memórias guarda do julgamento da rede bombista?
Aquilo parecia a Feira da Ladra, os tipos estavam sempre atrás dos depoentes a mandar bocas. Pessoalmente, guardo um episódio curioso. Num dos intervalos das sessões, virei-me para um dos advogados da defesa e disse-lhe: «Ó senhor doutor, desculpe lá, mas vocês não estão a conduzir isto lá muito bem. Quanto mais me hostilizam, mais eu digo. É que há coisas que não foram ditas nem estão escritas e que tenho de dizer para me livrar das vossas acusações.» O facto é que, a partir daí, aquilo serenou. Até nos jornais se notou.
Houve uma justiça para o terrorismo de direita e outra para o terrorismo de esquerda?
A direita foi beneficiada, não tenho qualquer dúvida. Veja-se o caso do Ramiro Moreira: condenado a 21 anos, foi-se embora para Espanha e garanto que não foi ao meu colo. E os outros nem sequer puseram o rabo na prisão, tirando o tempo de prisão «preventiva».
Qual foi o papel da Igreja na rede bombista?
Apadrinhava. Na reunião do MDLP em que se decidiu pôr uma série de bombas seguidas em Braga participou o cónego Melo. À saída, quando se despediu dos bombistas, disse: «Deus abençoe as vossas mãos.» A posição que ele assumiu diz bem de que lado estava a Igreja: estava-se marimbando para os gajos que morriam com as bombas.
Resumindo: os que foram efetivamente condenados em tribunal constituíam a arraia-miúda da rede bombista?
Exatamente. Mas eles é que se organizaram para que assim fosse. Não sei quanto receberam, se é que receberam, mas eles sabiam que isso lhes ia acontecer. A partir do momento em que começaram a desdizer tudo o que tinham dito, sabiam que iam «comer».
O PS foi outro dos partidos que não quiseram que o processo da rede bombista chegasse às últimas consequências?
No início, os socialistas devem ter apadrinhado aquilo tudo, pois o que eles queriam era dar cabo do PCP. No julgamento, não queriam que aquilo fosse muito longe, pois também tinham telhados de vidro.
O regime seria hoje diferente se o desfecho do julgamento da rede bombista tivesse sido outro?
Naquele tempo, foi uma pedrada no charco, mudaram-se consciências. Mas se os mandantes tivessem sido condenados, o regime seria outro e a sociedade portuguesa também. Não tenho a mínima dúvida.
Estivemos à beira de uma ditadura comunista?
Acho que não. Estivemos mais próximos de uma ditadura de direita. E as pessoas que, no fundo, mais contribuíram para que isso não acontecesse nunca foram exaltadas como deveriam ter sido.
Quem?
O Melo Antunes, por exemplo. Foi primordial nisso. A direita queria acabar com o PCP e voltar ao antigamente, mais nada! Só um gajo com um grande par de tomates, como o Melo Antunes, poderia vir dizer à televisão, naquela altura, que o PCP era essencial à democracia.
Qual foi o seu percurso a seguir ao processo da rede bombista?
Estive cinco anos no Estado-Maior das Forças Armadas. Mandaram-me para os Açores. Eu não queria, mas foi o melhor período da minha vida. Fui chefe do Estado-Maior lá. Quando faleceu a minha mãe, voltei. Puseram-me a chefiar a repartição das relações internacionais do Ministério da Defesa. Veja bem, um tipo como eu, que não sabia línguas! Sabia o inglês de liceu. Disse-o ao Fuzeta da Ponte. «E quanto ao seu inglês, good luck!», disse ele. Estive ali dois anos sem fazer nada. Tinha dois adjuntos que sabiam inglês. Quando desconfiava que se tratava de alguma coisa importante, eles liam. Mais tarde, fui dois anos juiz auditor do 1.º Tribunal Militar. E quatro anos juiz-presidente.