Descemos os dois degraus que se seguem à porta e damos de caras com José Saramago, numa imagem presa ao espelho, mesmo em frente à entrada. Ficamos de imediato a saber que é ali a sua mesa, facto também assinalado por uma placa dourada em que se lê precisamente isso. Hoje, quem ocupa o lugar é Pilar del Rio, sua viúva e presidente da fundação com o nome do escritor.
Acabamos de entrar no Farta Brutos, no Bairro Alto, em Lisboa, o restaurante que pode ser considerado a cantina de Saramago – e isso nota-se em muitos pormenores espalhados pelas paredes. Esta semana, na véspera do 97º aniversário do escritor, nascido a 16 de novembro de 1922, lançou-se um livro de homenagem a Francisco Oliveira, o mítico dono do restaurante que, durante 30 anos, geriu o desfile de figuras – literárias e não só – que se sentavam nas suas mesas, para apreciar as receitas minhotas que trouxe para a capital. Mas Saramago foi sempre um nome maior por entre os seus clientes que entretanto se tornaram amigos.
Por trás da cadeira em que se senta Pilar, que também se transformou numa habitué por culpa do marido, há uma prateleira com livros do autor, devidamente arrumados por ela, com a Viagem a Portugal em destaque. Mesmo abaixo, vemos uma fotografia à porta do convento de Mafra, em que toda a equipa da ópera Blimunda, baseada na obra Memorial do Convento, está a posar para a câmara. Junto a ela, uma carta manuscrita, em papel timbrado do restaurante, e assinada por Saramago: “Teríamos comido no Farta Brutos se o Farta Brutos se tivesse deslocado a Mafra.” E lá teria o escritor voltado a comer as suas pataniscas (na lista estão batizadas de “pataniscas à Saramago”), com arroz de tomate, acompanhado de um vinho alentejano bom, não muito caro. Para sobremesa, peras bêbedas ou leite creme, escolhidos da panóplia de receitas que ainda hoje vem na totalidade para a mesa, para nos servirmos como em nossas casas. Pilar, vegetariana, prefere peixinhos da horta com um bem servido arroz de grelos.
Sozinho, com uma caixa de bolos
A foto que tem mais destaque de entre as centenas que forram as paredes do restaurante, com moldura dourada, tem história solene por trás e ilustra bem como esta era a segunda casa de Saramago. O diploma do Prémio Nobel da Literatura foi aqui entregue a Carlos Reis, à época diretor da Biblioteca Nacional. E noutro almoço – o escritor era mais de almoços do que de jantares, por isso quase nunca se cruzava com o escritor Cardoso Pires –, depois de feitos os pedidos a Oliveira, passa-lhe um envelope com o original da obra O Ano da Morte de Ricardo Reis para o espólio da instituição e ainda anuncia, sem pompa, mas com muita circunstância, que entregará outros manuscritos, cadernos de notas e correspondência com outros escritores.
A amizade entre José Saramago e o minhoto é muito anterior ao Nobel e, naturalmente, foi crescendo com o tempo. Sempre que acabava de escrever uma obra, o autor batia à porta do restaurante com uma pilha de exemplares, que oferecia a toda a equipa (muitos ainda hoje fazem parte de staff). “Havia vezes em que ele se sentava a comer, sozinho, sempre com um livro ou um caderno por companhia. Entretanto, isto fechava, o meu pai tinha de sair, mas deixava-o ficar aqui sossegado, enquanto se deliciava com uma caixa de bolos secos que trazia”, conta Rogério Oliveira, 44 anos, o atual gerente do restaurante, que hoje continua a encher, mas sobretudo de turistas.
Pilar del Rio recorda-se bem do dia em que recebeu Mário Soares, então Presidente da República, em sua casa, nos idos de 1990. E de ter telefonado para o Farta Brutos a pedir ajuda para o repasto solene. Dessa vez, Oliveira sugeriu umas perdizes… ou umas pataniscas? A memória já não lhe dá certezas quanto ao menu servido nessa noite, mas se há coisa de que não se esquece foi de ter vindo jantar com os seus 14 irmãos, numa enorme mesa corrida, no dia em que Saramago foi a enterrar, há 9 anos. E de ter sido uma bonita homenagem ao marido, que até já teria falado disso, antes de morrer.
Nessa mesma manhã, Oliveira (que, entretanto, também morreu) passara nos Passos do Concelho, onde o corpo estava em câmara ardente, e dedicara-lhe a seguinte mensagem, no livro de condolências: “Senhor Saramago, onde estiver, se precisar de umas pataniscas, escreva-me!” A notícia da morte do Nobel chegou depressa ao Brasil, país com quem Saramago mantinha as melhores relações, e mandaram logo a correspondente da Globo em Portugal ao Farta Brutos, para recolher o testemunho do proprietário, ainda abalado com a partida do amigo. De entre os ilustres comensais desta casa, há muitos do país irmão, de Jorge Amado a Maria Bethânia, e quase todos vieram pela mão do casal José e Pilar.
Concertos improvisados
As memórias da presidente da Fundação Saramago confundem-se inevitavelmente com as mesas deste restaurante. Por exemplo, conta, “foi aqui que conheci Zélia, a viúva de Zeca Afonso, de quem hoje sou grande amiga. E Fausto, cuja música Por Este Rio Acima Saramago me deu a conhecer, num dos nosso primeiros encontros, partilhando uns auscultadores comigo.”
“É por causa da Pilar que o Farta Brutos, que serve comida de tacho, se tornou num restaurante literário”, assegura Ivan Dias, 44 anos, grande amigo da casa e co-autor do livro de homenagem que foi lançado na sexta-feira, 15, numa festa para clientes amigos. Nem de propósito, vem à mesa a lembrança do dia em que a presidente veio jantar com o agente literário mais temido do mundo, o americano Andrew Wylie, e se encontraram com a cantora Mariza. Como ele tinha acabado de perder o seu concerto em Nova Iorque, a fadista brindou-o com uma série de músicas, depois de Rogério ter ido a correr pelo bairro para lhe arranjar uma guitarra. “Esse tipo de coisa não é assim tão raro de acontecer aqui”, garante o proprietário, habituado a lidar com grandes personalidades desde miúdo, quando almoçava todos os dias no restaurante do pai.
A avaliar pelos retratos da parede, pelos nomes que vão pairando na conversa, e pelo que já lemos no livro recém-publicado (€25, numa edição de autor), aqui resistem memórias de gente das artes, da ciência, do jornalismo, da política e do desporto. Fala-se disso e eis que aparece o ex-futebolista Abel Xavier – também mencionado na publicação – com a namorada Silvana. Depois de abraçar os amigos, o casal senta-se para mais um jantar que promete ficar carregado de boas lembranças.