Longe vão os tempos em que umas valentes reguadas marcavam não só as mãos das crianças, como também determinavam a quem pertencia a autoridade na escola: o professor.
Agora que um docente de TIC (Tecnologias de Informação e Comunicação) foi acusado de ter agredido um aluno na Escola Secundária Rainha Dona Leonor, em Lisboa, alegadamente com alguma violência (terá agarrado o aluno pelo pescoço e batido com a cabeça deste numa mesa, segundo contaram alguns colegas de turma, gesto motivado pelo facto de o aluno estar a mexer no telemóvel), coloca-se a questão: há justificação para um adulto bater numa criança?
O professor (que estava a dar a sua primeira aula), foi de imediato suspenso e o caso seguiu para as autoridades. Mas a polémica permanece. Até porque impor o respeito e abuso de autoridade confundiram-se muitas vezes dentro da sala de aula e durante várias gerações.
Águeda Tavares, 74 anos, ainda se lembra muito bem das reprimendas na infância só por ser canhota. À conta de tantas reguadas que a professora primária insistiu em lhe dar, escreveu a vida toda com as duas mãos. Décadas mais tarde, já nos anos 1980, também Alexandra Mendes, 43 anos, era castigada com a régua pelo simples facto de ter feito um buraco numa folha ao apagar uma palavra com a borracha. Comportamentos e ações consideradas normais para uma sociedade até há pouco tempo a viver em regime de ditadura.
Até à década de 1960, o direito português, incluindo a jurisprudência dos tribunais superiores, era especialmente “benévolo” com os maus-tratos a crianças, que eram configurados como exercício de um direito de correção exercido por pais e educadores. Antes do 25 de abril de 1974 era possível bater numa criança ou numa mulher, porque se entendia que havia um “poder corretivo”, uma norma de exceção que legitimava um comportamento agressivo.
“Havia um Estado desculpante desde que houvesse intenção de corrigir”, lembra Dulce Rocha, presidente do Instituto de Apoio à Criança. Em termos legislativos, a situação foi invertida pela Constituição de 1976 e, mais precisamente, pelo Código Penal de 1982 (Eduardo Correia), que tipificou o crime de maus-tratos (artigo 152.º), que se manteve no Código de 1995 (Figueiredo Dias). Não havia qualquer permissão para um estranho bater numa criança, não havia reguada, nem vara, nem bofetada, nem nada.
Em 1991, quando Dulce Rocha chega para trabalhar no Tribunal de Menores, lembra-se de já haver uma certa consciencialização da sociedade para o tal “poder corretivo”. Para trás ficava o Ano Internacional da Criança, proclamado pelas Nações Unidas em 1979, que juntamente com movimentos como o da Escola Moderna ou o Grito, no Porto, contra a prisão de crianças, tiveram grande influência na tomada de posição das famílias face à violência contra os mais pequenos. Tudo isso fez de tal forma sentido que, em 1989, Portugal é um dos primeiros países a ratificar a Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança.
Em 1996/1997, num projeto de revisão do Código Penal, Rui Pereira, jurista e professor universitário, propôs a transformação do crime de maus-tratos em crime público, por forma a dispensar a necessidade de queixa em todos os casos. Mas só em 2000 se reuniu o consenso necessário, na Assembleia da República, para essa transformação. Mais tarde, na Reforma Penal de 2007, autonomizou-se o crime de violência doméstica (artigo 152.º) em relação aos maus-tratos (artigo 152.º A).
Presentemente, há dois crimes paralelos, um intrafamiliar (abrangendo os conceitos de família, união de facto em sentido amplo e relações já terminadas) e outro extrafamiliar (aplicável a infantários, escolas e lares, designadamente). Ambos os crimes são públicos e abrangem, após a revisão de 2007, “maus-tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas da liberdade e ofensas sexuais”, que não sejam punidos mais severamente por outras incriminações. A referência aos castigos corporais afasta qualquer ideia de agressão a crianças “justificada pelo direito de correção”. “Atualmente, defendo que as penas, que vão até cinco anos, devem ser agravadas, para um máximo de oito anos, porque há situações cuja gravidade e reiteração justifica uma punição mais severa”, explica o penalista à VISÃO.
Crianças: de menos para iguais
Para Maria do Rosário Carneiro uma palmada é um poder desproporcionado sobre o outro. “Quando um adulto bate numa criança perdeu a capacidade de se relacionar com ela. A força é uma demonstração primitiva de incapacidade de relação”, diz a antiga assessora dos secretários de Estado da Investigação Cientifica, Ensino Superior e Família no período entre 1979 a 1983. E continua: “A educação faz-se sobretudo através de atos de imitação, uma criança que é batida aprende a bater. Além do exercício de poder desproporcionado de um adulto sobre uma criança, que é o que representa a punição física, em termos educativos o que faz é transmitir que bater é possível.”
Maria do Rosário Carneiro foi professora universitária durante 42 anos e hoje faz parte da comissão de acompanhamento e fiscalização do funcionamento dos centros educativos para garantir que os direitos das crianças são respeitados. “Há crianças nestes centros que cometeram atos de bullying muito violentos. Têm entre os 12 e os 16 anos e são inimputáveis criminalmente, mas são responsabilizadas pelos atos praticados”, explica. São crianças que cometeram delitos, mas têm de continuar a ser tratadas como crianças e o objetivo é que tenham uma educação completa e que se integrem na sociedade como cidadãos de plenos direitos.
Para a antiga docente, licenciada em Ciências Sociais e Políticas, “o mundo ocidental no século XX desenvolveu um conjunto vastíssimo de conhecimentos, que permitiram às crianças passar de uma situação de menos para iguais.” “Sociedades mais evoluídas são sociedades menos violentas, em princípio. As pessoas contêm aquele instinto de agredir para impor a sua vontade. É difícil de entender que, mesmo à luz de outras civilizações, um ato de violência física sobre alguém seja um ato educativo. É um ato de imposição de poder.”
Já Dulce Rocha não tem dúvidas: “Devia haver sempre uma condenação pública por parte dos governantes contra a violência e, por vezes, não se verifica de imediato. Tal como se condena a violência no Desporto, deviam também condenar a violência na Escola.”
Para o pediatra Hugo Rodrigues, os castigos físicos são mais prejudiciais do que benéficos. “Se existir, o benefício será a curto prazo, porque a médio e a longo prazo não ensina nada, não será isso que vai fazer com que as crianças consolidem comportamentos ou atitudes diferentes. Os castigos físicos são humilhantes para as crianças, prejudicam e pode interferir com a sua auto-estima e, acima de tudo, pode ser um perpetuar de violência. A forma como as crianças aprendem a resolver os problemas é a forma como veem os adultos resolver. Os modelos são os adultos de referência e, se em casa são os pais e os avós, na escola são os professores.
Para o médico faz mais sentido elogiar, premiar e recompensar os comportamentos positivos do que punir os maus. Mas, “os professores têm de ter autoridade nas escolas. Nas situações do dia-a-dia os pais não têm de se meter nos assuntos escolares, como também acho que se a criança se porta mal na escola, se não for algo muito grave, se já foi castigada na escola, não deve ser castigada em casa outra vez. Não é justo castigar duas vezes o mesmo erro. Os pais ao castigarem por cima estão a retirar autoridade aos professores.” Na terceira classe, Hugo Rodrigues também apanhou reguadas por duas vezes, na terceira classe, situações que não lhe causaram trauma, mas que o ajudaram a perceber o sentido de justiça e de injustiça.