O senhor Joaquim viu tudo. Estava ao portão de sua casa, cujo muro faz paredes-meias com o que era o início da antiga ponte. Já acabara o jantar de domingo em família. Como a passagem para carros era muito estreita, filha e genro aguardavam a sua vez para passar para o outro lado. Ele já não os deixou seguir. “Parem, que não há estrada. A ponte caiu.” Em segundos, viram um autocarro cheio de gente ser arrastado pela corrente furiosa, até desaparecer no leito do rio. Estava uma noite de temporal como há muito não se via. Mas nem a chuva intensa e o vento forte abafavam os gritos de desespero de que quem seguia lá dentro. “Era um som ensurdecedor”, recorda Joaquim Coelho, hoje com 78 anos.
Esta é uma história de uma catástrofe que chega agora à idade maior. À época, ainda as Torres Gémeas, em Nova Iorque, não tinham sido atacadas, desmoronando-se até se tornarem pó. O Porto estava a dar os primeiros passos como Capital Europeia da Cultura. A paisagem do Douro também aguardava para ser Património Mundial da Humanidade. E eis que o País sentiu o chão a fugir-lhe debaixo dos pés: uma excursão às amendoeiras em flor acabava no fundo das águas raivosas do rio Douro. Os carros de família que seguiam atrás também não travaram a tempo. A tragédia, a tragédia de que se fala naquela região a pouco menos de 50 quilómetros do Porto, diz sempre respeito àquela noite em que um dos pilares da estrutura que ligava Castelo de Paiva a Entre-os-Rios simplesmente desabou.
A ponte Hintze-Ribeiro, como lhe chamaram em homenagem ao político responsável pela sua encomenda e mais tarde primeiro-ministro, fora erguida junto à zona em que o Douro se encontra com o Tâmega. Fazia a ligação de Entre-os-Rios, no concelho de Penafiel, à margem de Castelo de Paiva. Tinha 116 anos e menos de seis metros de largura. Foi construída para deixar passar carros de bois e cavalos, mas acabou a suportar o tráfego rodoviário das duas margens, à vez. Andava há que tempos a suplicar obras profundas, mas esse pedido ficaria esquecido numa gaveta qualquer. A ponte que era longe demais dos centros de poder acabou por não aguentar o peso do tempo e colapsar, arrastando para a morte as 53 pessoas a bordo no autocarro e as outras seis que seguiam nos carros atrás. A noite daquele 4 de março de 2001 registava a maior tragédia de que havia memória no País até então. Faz agora 18 anos.
De repente, da noite para o dia, instalava-se um acampamento provisório nas margens daquela correnteza em fúria, abrigando os familiares das vítimas, as forças especiais, os políticos. Perante aquela leva de mortos perdidos nas águas, e aquele inverno de chuva sem fim, decretaram-se dois dias de luto nacional.
A demissão pronta de Jorge Coelho, então ministro do Equipamento Social, ajudou ainda a passar a ideia de que o Estado irresponsável teria os dias contados – embora para muitos a culpa de tudo aquilo tenha morrido solteira. Cinco anos depois, os engenheiros da ex-Junta Autónoma de Estradas, que há muito saberia do risco inscrito nos pilares da ponte, eram absolvidos no único processo que corria nos tribunais e que os acusara de violação de normas técnicas.
As gentes dali permaneciam de olhos no rio. Ao mesmo tempo, um circo mediático filmava tudo para a posteridade: as romarias de mirones, piqueniques de famílias inteiras sentadas à beira do rio, à espera da calmaria, à espera de algum sinal de vida.
Nada. O primeiro corpo apareceria ao segundo dia. Seguir-se-iam outros, mas já na costa da Galiza, onde ainda se encontraria uma mochila e bancos do autocarro. Entretanto, era improvisada uma morgue num armazém, que seria depois transferida para o polidesportivo. Mas das 59 pessoas então dadas como desaparecidas no acidente apenas se recuperariam 20 corpos.
O último apareceria 79 dias depois. Trazia o que parecia serem restos de uns boxers e um porta-chaves e isso permitiu identificá-lo. “Foi o nosso primeiro contributo” assinala Paulo Teixeira, hoje com 54 anos, então no início do mandato como presidente da câmara de Castelo de Paiva. “À conta disso, fez-se jurisprudência e passou a ser possível identificar pessoas a partir de objetos”.
Gonçalo Rocha, o atual autarca, insiste que os paivenses souberam fazer das tristezas alegrias e que hoje está tudo melhor. “É evidente que este acidente marcou uma época. E em todo o país: ninguém estava preparado para uma circunstância e um acidente trágico como aquele. Nunca mais haverá nada assim.”
Porém, para muita daquela gente, as noites de sono nesta altura do ano são sempre mais curtas. O pensamento anda mais inquieto. A ansiedade é maior. A ausência de luto completo, para quem não teve direito a fazer funeral com corpo, é uma ferida que não sarou.
Para que ninguém esqueça, todos os 4 de março desde então há uma cerimónia que se repete, no santuário do Anjo de Portugal. A gigante estatueta de bronze debruçada sobre o local da tragédia foi ali plantada em 2003 e simboliza a paz que tem faltado – além de querer ser também um local de reflexão, a imagem de uma tragédia que não deveria voltar a acontecer em Portugal. Na base tem inscritos os nomes de todas as 59 vítimas do acidente. Está rodeada de 59 castiçais que recebem regularmente velas acesas. O ritual do aniversário do desastre inclui ainda 59 flores deitadas à água.
Durante uns tempos tiveram de passar o rio de barco. Agora têm pontes a mais: a substituta que foi inaugurada um ano depois e serve a população local, e outra plantada lá ao lado em 2004, de ligação à via rápida.
O caso fez as parangonas internacionais como a pior tragédia da Europa do seu tempo, arruinando a imagem do país resplandecente saído da Expo’98. Impôs ainda uma nova expressão: a Síndrome de Entre-os-Rios, para assinalar um interior esquecido, que ocupa muito pouco da atenção do poder central. É verdade que hoje já não há ali registo de escolas instaladas em galinheiros e demora-se muito menos até chegar ao Porto – há 18 anos, aquele percurso único de curvas e contracurvas remetia-nos para uma interioridade absoluta. Agora ao percorrermos o alcatrão novo já quase não se sente isso. Quase.