As derrotas do ‘Vitorioso’
Abandonado pela mulher, julgado, exilado e preso, o perturbado tio de D. João V receberia um irónico cognome
No Palácio da Vila, em Sintra, há um quarto que faz lembrar a sala das preocupações do Tio Patinhas, tão desgastado está o chão. As marcas circulares de passos foram deixadas por um preso célebre: o ex-rei D. Afonso VI. Quem mandou prendê-lo? O irmão, D. Pedro II (pai de D. João V), que lhe arrebatou o trono e a mulher. O infeliz Afonso, que passava ali os dias a andar à roda, morreria aos 40 anos com fama de louco.
Só fama? Logo aos 3 anos, em 1646, fora atacado por uma “febre maligna” que deixaria sequelas. Irascível, desafiava as ordens dos pais e dos educadores. Quem passasse no Terreiro do Paço veria por ali um grupo de rapazolas a atacarem cães à pedrada e a assustarem os transeuntes. Um dos mariolas era o futuro rei de Portugal, D. Afonso de Bragança, filho de D. João IV e de D. Luísa de Gusmão. Para escândalo público, Afonsinho fez amizade com o vendedor de fitas Antonio Conti e deu-lhe um quarto no palácio, ao lado do seu. Não tardou a fazer do retroseiro comendador da Ordem de Cristo.
Os anos passaram, mas Afonso não mudou. Já adolescente, juntava-se a arruaceiros e provocava desacatos nas ruas, chegando a assaltar casas e igrejas. Relacionava-se publicamente com prostitutas e gabava-se disso.
Entretanto, o conde de Castelo Melhor, secretário de Estado, fez triunfar um golpe palaciano destinado a afastar do poder a enérgica regente, mãe do intratável Afonso. Para entregar o governo a alguém ajuizado? Não, a Afonso, politicamente mais manobrável do que a progenitora, mas indubitavelmente doente.
Se não mostrou ser um grande rei, D. afonso VI também se revelou incompetente como amante. Este pormenor, que para um homem comum só diz respeito à sua vida privada, ganha foros de tragédia nacional quando se aplica a um rei. Marido, desde 1666, da francesa Maria Francisca Isabel de Saboia, aparentada com Luís XIV, não conseguiu “consumar o casamento”, deixando o trono sem herdeiro. A união fora negociada por Castelo Melhor, para estreitar laços com a França, valiosa aliada na guerra que Portugal travava contra a Espanha, após a restauração da independência, em 1640. E estreitou até demais. Maria Francisca mostrou-se mais interessada em defender os interesses franceses do que os da sua nova pátria.
Na sua guerra aberta contra o rei e marido, a francesa acabaria por ter a colaboração do infante D. Pedro, irmão mais novo de Afonso VI. A conspiração – pois disso se tratou – passaria pela reclusão temporária da jovem rainha num convento, a destituição do rei e a abertura de um processo acerca da sua virilidade.
Os depoimentos das prostitutas
No decorrer das doidas audiências, uma mulher chamada Fernanda Tomás declarou perante um circunspecto júri do tribunal da Relação Eclesiástica de Lisboa que a morfologia mais íntima de D. Afonso VI era diferente da de outros homens que conhecia (ela usou palavras mais diretas). Outra, Jerónima Pereira, contou o mesmo conto e acrescentou um ponto. Outra ainda, Jacinta Monteiro, pormenorizou que fora levada ao paço por um criado e ali conduzida a um aposento onde, durante três dias e três noites, o futuro rei tentara fazer amor com ela, sempre em vão. Uma tal Isabel de Oliveira limitou-se a testemunhar que uma sobrinha sua fora levada ao paço pelo próprio Castelo Melhor para estar com o rei, nada sabendo do que lá se passara; mas achou por bem acentuar que era voz corrente a incapacidade de D. Afonso para se “ajuntar” com uma mulher. Quando chegou a sua vez de depor, os criados de quarto narraram gabarolices do soberano, que mais não seriam do que tentativas de autojustificação do seu fraco desempenho.
A comissão de médicos que depôs foi concludente: as “febres malignas” de que sofrera em criança seriam responsáveis pela sua impotência, que nem os banhos das Caldas da Rainha tinham conseguido minorar.
Neste ainda cruel século XVII, a deposição do rei foi, com naturalidade, acompanhada de prisão. O irmão invejoso manobrava para se apoderar do trono e da rainha. Já detido, Afonso, assinou uma confissão “médica” redigida pelos partidários de Pedro. Homem dado a pulsões intensas e que se apaixonava com facilidade pelos objetos do seu desejo, nada indica que Afonso VI fosse homossexual, como chegou a pensar-se. A sua sexualidade era a de um homem atormentado pelo fantasma do desempenho.
O irmão conspirador subiu então ao trono, com o nome de D. Pedro II, e casou-se com a ex-cunhada, que foi assim duas vezes rainha de Portugal. Exilado na ilha Terceira e depois preso no tal quarto de Sintra, Afonso só encontraria paz no dia em que uma apoplexia o arrebatou.
Ironicamente, a História deu-lhe o cognome de Vitorioso. Porque foi no seu reinado que Portugal encerrou como vencedor o capítulo da Guerra da Restauração, forçando a Espanha a reconhecer a independência do País.
Lengalenga para engravidar
Aqui, a loucura não era bem do rei D. Pedro II, mas teve que ver com ele
“Eu te embuço, eu te rebuço com o buço do lobo, com o osso do homem morto, com o pão da forca e a corda do enforcado, para que tu, infante D. Pedro, andes a meu mandado, tu me digas o que souberes, tu me dês quanto tiveres, tu me ames mais que a todas as mulheres e todas quantas vires te pareçam burras velhas e só eu te pareça uma dama bela.”
No seu leito de dossel, o futuro D. Pedro II (que por este tempo andava a congeminar a deposição do irmão, D. Afonso VI) deve ter franzido a testa ao ouvir e lengalenga murmurada pela mulher com quem estava deitado. Francisca Botelho era sua amante regular, mas temia perder tal posição. Contratara por isso uma bruxa, que lhe receitara uns procedimentos infalíveis para garantir a perenidade do amor principesco. O método mais seguro era engravidar, e a ladainha seria de grande ajuda. Desconhece-se qualquer filho de D. Pedro e de Francisca Botelho, mas sabe-se que ele os teve de três amantes conhecidas e de diversas outras cuja identidade se perdeu.
Já vimos que D. Pedro II se casou com a ex-cunhada, Maria Francisca de Saboia. Nesses tempos barrocos de perucas e fitas, ele revelou-se um praticante regular do flirt com senhoras casadas e damas acolhidas à proteção dos conventos. Se a sua relação com D. Maria da Cruz Mascarenhas foi mantida com discrição, já o mesmo não pode dizer-se da ligação com a francesa Anne Duverger, que chegou aos ouvidos da sua compatriota rainha de Portugal, que, despeitada, ordenou a sua expulsão do reino. Ironicamente, a rainha viria a morrer de hidropisia antes da partida da rival. Outra dama, Isabel Francisca da Silva, seria corrida do paço pela sempre atenta Maria Francisca. Das muitas das ligações secretas de D. Pedro não terá tido a rainha conhecimento, mas uma delas tornara-se pública: foi com a famosa prostituta Schomberg.
Depois da morte de Maria Francisca de Saboia, o rei casou com a alemã Maria Sofia de Neuburgo, da casa reinante da Baviera. Da união nasceriam sete filhos, o segundo dos quais reinaria com o nome de D. João V – que já conhecemos tão bem.
Maria Sofia viria a morrer aos 33 anos, segundo constou na Europa da sífilis transmitida pelo marido. Isso seria uma vergonha, mas parece que o que a vitimou mesmo foi uma erisipela provocada num nervo da orelha pelo uso de brincos loucamente pesados.
O desvario ao poder
Quando se pensa em loucura no poder, a imagem e o nome de D. Sebastião impõem-se
Não há quem não conheça as loucuras de D. Sebastião, que reinou de 1557 a 1578. Desaparafusado, imaturo, sonhador, irrealista, irresponsável e misógino – nenhum destes atributos impediu que milhões de portugueses, ao longo de séculos, tenham suspirado pelo seu regresso numa manhã de nevoeiro, montado num cavalo branco.
Desde jovem, desviava os olhos das mulheres. Quando, em pequeno, uma senhora quis abraçá-lo, implorou-lhe que o não fizesse. E quando outra lhe tocou, estremeceu.
Ao visitar, um dia, o mosteiro de Alcobaça, D. Sebastião quis ver os cadáveres dos reis de Portugal seus antecessores que ali jaziam. Mandou colocar os túmulos na vertical e retirar-lhes as tampas e obrigou os seus acompanhantes a beijarem a mão de Afonso III, ou o que dela restava. Virou-se depois para os despojos de D. Pedro I e invetivou-o por ter sido demasiado pacífico. Um monge, homem de certa cultura, teve a audácia de lembrar a sua majestade que se D. Pedro não fora conquistador de terras, nem por isso deixara de ser bom administrador, comentário que deixou D. Sebastião a espumar de fúria.
Ordenara este tresloucado que nenhum navio passasse diante da Torre de Belém sem autorização expressa, sob pena de ser alvejado pela artilharia do baluarte – fosse ele amigo ou inimigo. Para verificar se a ordem era cumprida, metia-se numa embarcação e seguia rio acima, exultando ao ver os tiros de canhão atingirem a água, em redor. Como nunca foi atingido, passou a julgar-se protegido por um desígnio divino que o fadava para vir a ser o conquistador da Moirama. Quando o mar estava bravo, embarcava numa caravela, saía da barra do Tejo e só voltava quando o navio já estava meio avariado.
Um dia, em 1574, D. Sebastião desapareceu da corte. Sonhando a tempo inteiro com conquistas em Marrocos, embarcara em Paço de Arcos rumo a Tânger. Numa carta enviada de Lagos, confiava a regência ao tio, o cardeal D. Henrique, e convidava os fidalgos do reino a irem juntar-se a ele para o acompanharem numa cruzada em terras infiéis. Como a ideia – uma espécie de monomania de todos conhecida – era impopular, preparara a operação secretamente.
Chegado a Tânger, o rei esforçou-se por convencer a guarnição da praça-forte, ocupada pelos portugueses desde 1471, a reconquistar Larache e Arzila, abandonadas por D. João III. A sugestão não foi bem acolhida, e quando se apercebeu de que estava a demorar-se demais, voltou a Lisboa. Conseguiu regressar com vida, mas ia naufragando numa tempestade que o atirou para costas da Madeira. Mas pouco depois embarcava para uma nova viagem às praças marroquinas, que o deixou de água na boca para “planear” (com muitas aspas) a desastrosa expedição de Alcácer-Quibir.
Foi assim. Sempre a sonhar com um império cristão no Norte de África, resolveu em 1578 intervir numa disputa entre dois senhores marroquinos, aliando-se a um deles. Dessa vez, conseguiu arrastar para a louca aventura a nobreza portuguesa, à frente de um exército de 25 mil homens. Partiram como se fossem para uma festa, em barcos engalanados e ao som de fanfarras. Pouco depois, a maior parte da elite portuguesa tinha perdido a vida num ermo de Marrocos chamado Alcácer-Quibir, numa batalha absurda – sem objetivo, sem tática, sem liderança.
Como o corpo de D. Sebastião não foi recolhido pelos portugueses sobreviventes, nem nenhum se recordava de o ter visto, nasceu a crença no seu regresso. Claro que o desejo popular de que isso viesse a suceder não se devia aos dotes do desastrado jovem para a governação, mas ao facto de ele não ter descendentes, o que significava que a coroa deveria passar para Felipe II de Espanha, neto de D. Manuel I. O que efetivamente aconteceria, ligando Portugal à Espanha entre 1580 e 1640.
Quatro malucos calculistas
Loucura pode também ser ambição e escárnio. Estes não chegaram a ser reis, mas tentaram-no
O desaparecimento de D. Sebastião em Alcácer-Quibir foi aproveitado por alguns oportunistas, que tentaram fazer-se passar pelo monarca. Os vigaristas mais conhecidos foram o «Rei de Penamacor», o «Rei da Ericeira», o «Pasteleiro de Madrigal» e um italiano da Calábria chamado Marco Túlio Catizone. O primeiro, filho de um oleiro de Alcobaça, foi testa de ferro de «investidores» sem escrúpulos que procuravam retirar benesses do embuste, e acabou desmascarado e exposto à curiosidade popular montado num burro. O segundo, de nome Mateus Álvares, era um ex-monge capucho filho de pedreiro, e antes de ser descoberto rodeara-se de muitos seguidores da zona da Ericeira. O terceiro, Gabriel de Espinosa, era um soldado de fortuna experiente e poliglota de que o golpista frei Miguel dos Santos se serviu como instrumento para uma tentativa de assalto ao poder. O quarto era um aventureiro italiano cuja vida daria um excelente argumento para um filme de aventuras.
Dá banho ao Papa!
Um elefante foi a grande vedeta da louca embaixada de D. Manuel I à corte papal de Roma
Nos primeiros anos do século XVI, Portugal e os estados italianos encarnavam o espírito renascentista. A Itália, pela criatividade dos artistas e a munificência dos mecenas. O nosso país, por atravessar uma época de ostentação, fruto do monopólio das especiarias orientais. Quando, em 1514, D. Manuel I decidiu enviar uma embaixada à corte papal de Leão X, convergiram em Roma duas ostentações.
Foi deslumbrante o desfile de cortesãos sumptuosamente trajados e cavalgando montadas magnificamente ajaezadas. Mas o participante que mais atenções despertou foi um elefante de Ceilão com guarnições de ouro, transportando no dorso um belo cofre, oferta do rei português ao Papa. E o momento alto do espetáculo foi aquele em que o paquiderme, dirigido por um cornaca indiano, se aproximou de Leão X, mergulhou a tromba num vaso de água, a encheu e borrifou por três vezes o sumo pontífice. Tal atrevimento só era perdoável porque o reino de D. Manuel I era uma potência. Mesmo assim, foi uma grande loucura.
A paixão de Pedro e Inês
Um dos grandes mitos portugueses tem um fundo real: a louca fúria amorosa de um rei epilético por uma galega de beleza ofuscante
Era uma vez um príncipe chamado Pedro, filho do rei D. Afonso IV de Portugal, que em 1339 se casou com a nobre castelhana D. Constança Manuel. Mas no séquito de Constança, vinha uma bela dama galega, Inês de Castro, por cujos encantos o infante se deixou seduzir. Como o romance fosse vivido à luz do dia, Constança convidou Inês para madrinha do primeiro filho que teve de Pedro – o futuro rei D. Fernando. Ser madrinha implicava um grau de parentesco com o pai da criança que tornava incestuosas quaisquer relações de caráter amoroso entre ambos. Como sempre houve más-línguas desde que existem línguas humanas, a morte do pequenino infante D. Luís, com uma semana de idade, veio lançar as maiores desconfianças sobre Pedro e Inês, que já então se comportavam como um casal.
A conspiração dos fidalgos
A própria Constança faleceu também daí a pouco, quando dava à luz o futuro rei D. Fernando. Este desenlace deixou o ainda infante Pedro e a bela Inês livres para viverem a sua paixão, e eles viveram-na tão bem que haveriam de ter quatro filhos. Mas se o casal enternecia alguns, outros começaram a murmurar, pois os irmãos da beldade eram poderosos nobres castelhanos, o que poderia vir a pôr em causa a legitimidade sucessória de Fernando. Talvez a independência de Portugal não estivesse em risco, mas os nobres portugueses recearam que, devido à influência exercida por Inês junto de Pedro, os cargos mais importantes do reino passassem a ser atribuídos a castelhanos.
O rei D. Afonso IV, cansado de ouvir críticas venenosas e de escutar conselhos com travos de sangue, decidiu por isso mandar assassinar Inês de Castro, encarregando da sinistra tarefa os seus homens de confiança Álvaro Gonçalves, Pedro Coelho e Diogo Lopes Pacheco. Inês foi degolada enquanto o apaixonado e imprudente Pedro andava à caça. Ao desmontar e saber da notícia, foi tomado de fúria incontrolável. Voltou a montar e percorreu os campos gritando o nome de Inês e espadeirando contra tudo o que via. Coadunava-se com o seu perfil: era epilético, tímido e gago.
De combinação com os irmãos da assassinada, Pedro reuniu hostes e ergueu armas contra o pai. Como se fosse um inimigo de Portugal, pôs a ferro e fogo as províncias do Norte. Foi preciso a mãe, D. Beatriz (por sinal, castelhana) chamar o tresloucado à razão, lembrando-lhe que estava a pôr em risco os seus direitos à coroa, visto o pai poder facilmente privá-lo deles. E depois, meu filho, que disparates eram aqueles? As mães, como é sabido, chamam à razão puxando ao sentimento.
Daí a pouco tempo, D. Afonso IV fechava os olhos e D. Pedro subia os degraus desse trono que chegara a estar periclitante.
Torturas na ementa
Um dos primeiros atos de Pedro foi proclamar traidores os carrascos de Inês, que se tinham refugiado em Castela. Propôs assim ao soberano do reino vizinho a sua troca por refugiados castelhanos que estavam no nosso país. A extradição funcionou para Álvaro Gonçalves e Pedro Coelho, mas Diogo Lopes Pacheco, avisado a tempo, conseguiu dar o salto para França disfarçado de pedinte. Gonçalves e Coelho é que não escaparam à vingança de D. Pedro. Trazidos a ferros para Santarém, foram acolhidos com passos de dança pelo rei, antes louco de amor agora louco de alegria. Nem resistiu a desferir-lhes ele próprio umas chibatadas. No dia do suplício que para eles reservara, mandou que lhe pusessem a mesa junto de uma janela de onde se avistava o macabro terreiro, e deleitou-se duplamente a saborear os manjares que os criados lhe serviam e a assistir à atroz execução dos condenados: a um deles, o coração foi arrancado pelo peito, ao outro pelas costas.
A propósito dos passos de dança referidos: D. Pedro era um bailarino compulsivo. Uma noite em que desembarcou em Lisboa vindo de Almada, fez acordar o povo e foi a dançar, seguido de bailarinos espontâneos e estremunhados, encosta acima até ao Paço da Alcáçova.
A rainha morta
Conta a tradição que D. Pedro mandou desenterrar o cadáver da amada e a coroou (ou o que dela fisicamente restava) rainha de Portugal. Mas será verdade que Inês de Castro foi rainha depois de morta? Não existe prova documental de que o seu amor louco chegado a esse ponto, mas o episódio entrou no imaginário. A sugestão, tremendamente romântica, foi mesmo glosada por autores estrangeiros. Do que não há dúvida é de que D. Pedro fez transladar com pompa os restos de Inês do Convento de Santa Clara, em Coimbra, para o belo túmulo gótico do Mosteiro de Alcobaça, ao lado do que destinara a si próprio, que ainda hoje podemos admirar.
O escudeiro castrado
Mas há um aspeto da vida de D. Pedro I menos conhecido. Narra o cronista Fernão Lopes que o arrebatado soberano teve uma assolapada paixão… pelo escudeiro Afonso Madeira, ao qual “amava mais do que se deve aqui dizer”. Como este tivesse um caso com uma tal Catarina Tosse, o rei, furioso, “mandou-lhe cortar aqueles membros que os homens em maior apreço têm, de modo que não ficou carne até aos ossos que tudo não fosse cortado”. O pobre Afonso, segundo Lopes, foi tratado, “curou-se, engrossou nas pernas e no corpo e viveu alguns anos engelhado de rosto e sem barba e morreu depois de sua natural morte”.
Este Salomão é português!
Continua a ser D. Pedro I o protagonista das histórias que se seguem
É conhecido o episódio bíblico em que o rei Salomão ordena que um bebé seja cortado ao meio e repartido pelas duas mulheres que reclamam a sua maternidade, sentença que uma delas aprova e a outra rejeita horrorizada, mostrando assim ser a verdadeira progenitora. Também Portugal teve um Salomão, embora não tão sagaz. Foi D. Pedro I, o dos amores com Inês de Castro, que, nos dez anos em que reinou, andou a percorrer o País fazendo justiça pelas suas próprias mãos.
Em Santarém habitava um lavrador rico com quem o rei se dava. Um dia, estando nessa cidade e como não visse o homem, perguntou por ele e apurou que o filho o atacara à facada, deixando-lhe uma cicatriz na cara. O rei ordenou então que o chamassem e pediu-lhe que contasse como as coisas se tinham passado. O lavrador narrou a discussão que tivera com o filho e a agressão de que fora vítima, na presença da mulher. “Ora, manda-me cá a tua mulher e o teu filho”, ordenou o monarca. Quando a mulher chegou, perguntou-lhe: “Ouve lá, de quem é o filho?” Ela gaguejou: “Meu e do meu marido, senhor.” O rei cofiou a barba. “Hum!, não acredito. Se o teu marido fosse o verdadeiro pai, ele não o teria acutilado daquela forma.”
A lavradora acabou por admitir que o rapaz era filho de um frade confessor. No dia seguinte, D. Pedro foi ouvir missa na igreja onde em tempos ocorrera a violação. Concluída a cerimónia, mandou chamar o religioso. Após curta troca de palavras, o rei mandou meter o violador num caixote e serrá-lo ao meio. Como o rei não era um ilusionista daqueles que serram mulheres sem que estas sofram beliscadura, o desgraçado teve uma morte horrorosa. Esta é apenas uma das muitas histórias que se contam acerca da atuação de Pedro I como juiz.
O episódio do bispo do Porto ainda é bastante recordado.
onstou a D. Pedro, sem ter provas, que o prelado mantinha relações íntimas com uma mulher casada. Tanto bastou para que entrasse pelo paço episcopal e, pegando no chicote, o punisse. De outra vez, ao saber que uma mulher enganava o marido, condenou-a à morte. E de nada valeu ao enganado implorar de joelhos o perdão da esposa, que decerto amava.
Este justo injusto ficou na com o cognome de O Justiceiro.
Impassível à excomunhão
D. Afonso III não se importou com o castigo do Papa
D. Afonso III, que roubou o trono ao irmão (ler O rei que morreu de desgosto) era um amante compulsivo. Passara a juventude em França antes de vir fazer guerra a D. Sancho II. Deixara lá a mulher legítima, a condessa Mahaut. A segunda esposa foi uma filha bastarda de Afonso X de Castela, Beatriz. Como o casamento francês continuava válido, Afonso incorreu na ira do Papa, que o excomungou. Mas ele não se importou. Só uma pessoa no seu perfeito juízo se deixaria abater pela maior punição que a Idade Média podia conceber…
Diga-se que, loucura ou sanidade à parte, D. Afonso III foi um bom governante. Aboliu o trabalho não remunerado e anexou o Algarve e o Alentejo além-Guadiana.
Do incesto à desgraça
Os amores do rei Formoso
D. Fernando, filho de D. Pedro I e de D. Constança Manuel, mantinha relações íntimas com a meia-irmã Beatriz, filha de Inês de Castro. Mas a relação incestuosa duraria pouco, pois em breve se apaixonaria por Leonor Teles, uma beldade casada e com um filho. E logo se esqueceu não só de Beatriz, mas também de Isabel, a princesa castelhana com quem tinha casamento aprazado. Como toda a gente murmurasse por Leonor não ser de estirpe real, casaram–se em segredo, e meses depois nascia uma filha, também Beatriz.
Certo dia, D. Fernando sofreu uma tentativa de envenenamento e as infidelidades da mulher tornaram-se públicas. Alvo da chacota popular, o Formoso teve ainda tempo para casar a filha única com Juan I de Castela, transformando este rei estrangeiro em potencial herdeiro do trono português. Só a vitória de Aljubarrota, já depois da morte de Fernando, salvaria a situação.
Leia também as outras cinco histórias imperdíveis da primeira parte deste trabalho.
(Artigo publicado na VISÃO 1291 de 30 de novembro)