Sete dos 17 membros do órgão de disciplina dos magistrados judiciais não estiveram presentes no plenário em que foi decidida a demissão da magistratura do juiz Rui Rangel e a aposentação compulsiva da juíza Fátima Galante, no passado dia 3 de dezembro. As duas mais graves sanções disciplinares previstas no Estatuto dos Magistrados Judiciais foram decididas por cerca de 60% do total dos elementos do Conselho Superior da Magistratura, com 9 votos a favor e 1 voto contra do juiz Cardoso da Costa. Apesar das ausências, as regras permitem que o Conselho possa tomar deliberações sempre que a maioria dos seus membros esteja presente.
A decisão de expulsar o juiz Rui Rangel da magistratura e de aposentar compulsivamente a sua ex-mulher, Fátima Galante, foi tomada tendo por base o conteúdo do processo em que ambos foram constituídos arguidos por suspeitas de tráfico de influência, fraude fiscal e branqueamento de capitais. No caso, conhecido como Operação Lex, o Ministério Público entendeu ter recolhido também indícios dos crimes de corrupção e de recebimento indevido de vantagem, mas o juiz conselheiro Pires da Graça, que assumiu o papel de juiz de instrução neste processo, deixou cair esses dois crimes quando apresentou os indícios a Rangel e Galante.
Desse processo-crime, que continua a decorrer sem uma acusação, foi extraída uma certidão que deu origem ao processo disciplinar aberto pelo Conselho Superior da Magistratura e que reúne uma série de emails, sms e movimentos bancários que indiciam que Rui Rangel, então juiz desembargador no Tribunal da Relação de Lisboa, terá recebido milhares de euros, através de contas bancárias de um amigo advogado (Santos Martins), para redigir acórdãos favoráveis aos alegados clientes ou mover influências junto dos magistrados que tinham em mãos os processos, e que Fátima Galante, sua ex-mulher e também juíza na Relação de Lisboa – mas numa das secções cíveis – o terá ajudado a redigir sentenças e a branquear o dinheiro angariado com a alegada venda de decisões judiciais favoráveis.
Grande parte do conteúdo do processo disciplinar que culminou na demissão de Rangel e na aposentação compulsiva de Galante foi revelado pela VISÃO em fevereiro de 2018, umas semanas depois da detenção de mais de uma dezena de suspeitos e da constituição como arguidos dos dois juízes. A VISÃO revelava então tudo o que o Ministério Público tinha contra Rui Rangel: a lista dos 16 supostos clientes, as escutas comprometedoras, os emails e os movimentos bancários de uma alegada rede que usava o poderoso Tribunal da Relação de Lisboa (onde desaguam os recursos de muitos dos processos mais mediáticos do país) e que indiciavam que o juiz teria recebido da alegada clientela pelo menos 900 mil euros – suspeitava-se que o valor podia ser mais alto porque muita da documentação bancária ainda estava por analisar naquela altura.
Havia registo de 270 depósitos bancários nas contas do juiz – por vezes três no mesmo dia – feitos pelo advogado Santos Martins e pelo seu filho. Havia indícios de que na lista de clientes estavam José Veiga – que terá pagado ao juiz para ser absolvido num processo que corria na Relação de Lisboa e terá pedido ajuda em mais dois processos – ou Luís Filipe Vieira, que terá prometido bons cargos no Benfica em troca dos bons ofícios de Rangel junto de uma colega do Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra. Havia ainda indícios de que entre a clientela não havia só quem pagasse ao juiz desembargador para que aquele influenciasse o sentido das sentenças, mas por pareceres jurídicos ou para que o magistrado os ajudasse na obtenção de vistos, violando a exclusividade a que os magistrados estão obrigados por lei. E havia sms como esta, enviada a 3 de junho de 2017 – “Papi, já enviei o relatório do 1º acórdão” – que, somadas a emails, indiciam que Fátima Galante redigia acórdãos que tinham sido distribuídos a Rui Rangel e que aquele assinava, no Tribunal da Relação de Lisboa.
De acordo com informações recolhidas pela VISÃO, o inspetor judicial que conduziu o processo disciplinar considerou que os indícios obtidos através do processo-crime não deixavam margem para dúvidas de que Rui Rangel terá violado de forma grave as suas funções, razão pela qual propôs a sua demissão. Depois, um dos membros do Conselho Superior da Magistratura foi escolhido para redigir um acórdão e, pelo meio, Rui Rangel foi ouvido sobre os factos por um período que não durou mais de 45 minutos. A maioria dos membros do Conselho Superior da Magistratura concordou e decidiu aplicar a pena disciplinar “que está reservada aos casos de uma gravidade extrema”, lembra um antigo membro do órgão disciplinar dos juízes, que acrescenta não se lembrar de outro caso de demissão “por suspeitas tão graves e relacionadas com o exercício de funções”.
A defesa de Rui Rangel, a cargo do advogado Nuno Areias, vai recorrer da decisão para a seção de contencioso do Supremo Tribunal de Justiça. Argumenta que o processo disciplinar prescreveu e que não é admissível que um órgão disciplinar faça o julgamento de alguém que ainda não foi acusado; se pronuncie sobre indícios de natureza criminal que ainda não foram rebatidos – Rui Rangel ficou em silêncio quando foi chamado a depor sobre os factos que constavam do processo, no início de 2018 -; e tenha por base indícios criminais sobre os quais não foram feitas quaisquer diligências de investigação pelo Conselho Superior da Magistratura.
Rui Rangel argumenta, por exemplo, que uma boa parte do dinheiro que ganhou provém de direitos de autor de um programa de televisão e que o recebimento desses direitos não constitui uma violação dos Estatuto dos Magistrados. A defesa diz não estar ainda provado se é essa ou não a proveniência do dinheiro, porque o Ministério Público ainda nem acusou e o Conselho Superior da Magistratura não investigou. O juiz Cardoso da Costa foi o único dos membros do Conselho a votar contra a deliberação por entender, precisamente, que o processo disciplinar deveria aguardar o trânsito em julgado do processo-crime.
Fonte do órgão de disciplina dos juízes, porém, argumenta que os indícios eram suficientemente claros para concluir que os dois juízes tinham violado de forma grave as suas funções e, assim sendo, era preciso passar para a opinião pública a mensagem de que o órgão a quem compete fazer avaliações dos juízes e aplicar sanções não compactuava com o facto de dois juízes que estão a ser investigados por crimes graves continuassem a julgar esses e outros crimes. A mesma fonte admite que a doutrina se divide sobre se se deveria ou não aguardar pelo trânsito em julgado do processo-crime, mas alega não ser inédito que um juiz seja demitido antes da conclusão de um processo pelo Ministério Público. Ainda em 2016, um juiz foi demitido quando ainda estava a ser investigado por violência doméstica.
Para já, enquanto aguarda pelo resultado do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, Rui Rangel não pode mesmo continuar a exercer funções – porque este recurso não suspende a deliberação do processo disciplinar. A confirmar-se a decisão do Conselho Superior da Magistratura, como Rangel foi demitido da carreira não terá direito aos benefícios dados por lei aos magistrados judiciais. Só terá direito à pensão quando alcançar a idade da reforma e tiver 40 anos de serviço e essa pensão será calculada segundo as regras da Função Pública. Ou seja, para já, o juiz suspeito de tráfico de influência, fraude fiscal e branqueamento de capitais fica sem pensão e sem salário.
Os juízes são sancionados disciplinarmente por violação dos deveres profissionais ou por atos cometidos na sua vida pública que sejam incompatíveis “com a dignididade indispensável ao exercício das suas funções”. No caso da aposentação compulsiva e da demissão – as duas penas mais graves de sete possíveis – estas sanções aplicam-se sempre que fique provado que um juiz revela “definitiva incapacidade de adaptação às exigências da função”, “inaptidão profissional”, “falta de honestidade ou conduta imoral ou desonrosa” ou “tenha sido condenado por crime praticado com flagrante e grave abuso da função ou com manifesta e grave violação dos deveres a ela inerentes”.
É extremamente raro um juiz ser expulso da magistratura em Portugal: Rui Rangel é o terceiro juiz a ser demitido desde 2004. Entre esse ano e dezembro de 2019, apenas outros dois juízes foram expulsos da profissão com a mais grave sanção disciplinar imposta pelo Estatuto dos Magistrados Judiciais. E ainda mais raro ser expulso quando um processo-crime ainda está a decorrer. Esse foi, aliás, o argumento usado pelo juiz Cardoso da Costa no único voto de vencido do acórdão que condenou Rui Rangel ao afastamento definitivo da magistratura judicial.
Rangel está a ser investigado pelo Supremo Tribunal de Justiça desde setembro de 2016 e foi detido para interrogatório apenas em janeiro de 2018. Em fevereiro de 2016, a VISÃO revelou em exclusivo que o juiz tinha sido apanhado na teia de José Veiga, no processo Rota do Atlântico. Durante meses, os inspetores da Unidade Nacional de Combate à Corrupção (UNCC) da Polícia Judiciária (PJ) seguiram atentamente os passos de José Veiga nas suas vindas a Portugal. As ações de vigilância, conjugadas com as escutas telefónicas autorizadas pelo juiz Carlos Alexandre, permitiam-lhes saber com quem o ex-agente de futebolistas se relacionava, que negócios fazia e que planos tinha em mente. Foi durante uma dessas operações que os investigadores tropeçaram no juiz desembargador Rui Rangel. Os encontros entre o magistrado e José Veiga, que foi o seu principal apoiante nas eleições para a presidência do Benfica, em 2012, ficaram registados no processo. E durante o interrogatório a José Veiga, que acabaria em prisão preventiva, e a Paulo Santana Lopes, obrigado a pagar uma caução de um milhão de euros para ficar em liberdade, não foram esquecidos os pedidos de esclarecimento sobre a relação entre o empresário e o juiz desembargador.