Lucília Gago era diretora do Departamento de Investigação e Ação Penal (DIAP) de Lisboa quando foram feitas as primeiras detenções do chamado Caso dos Comandos. Nessa altura, a principal responsável daquele departamento terá ligado à procuradora Cândida Vilar, que tinha a seu cargo a investigação às circunstâncias da morte de dois recrutas num campo de tiro em Alcochete, em setembro de 2016, para indicar que algumas frases que constavam dos mandados de detenção deveriam ser retiradas.
Nesse despacho, a procuradora escrevera, entre outras coisas, que os suspeitos se moviam “por ódio patológico, irracional contra os instruendos, que consideram inferiores por ainda não fazerem parte do grupo de comandos, cuja supremacia apregoam”. Só mais tarde, no despacho de acusação, Cândida Vilar terá resolvido sacrificar algumas linhas, suavizando o documento.
Apesar desse incidente, a procuradora não terá guardado ressentimentos nem entendido o telefonema da sua superior hierárquica (que exerceu funções no DIAP em 2016 e 2017) como pressão ou constrangimento. Segundo fontes conhecedoras daquele episódio, terá compreendido que nem todos os magistrados adotam a mesma linguagem e reconhecido que a sua era, de facto, mais explosiva e violenta.
Além disso, quando, uns tempos depois, o tenente-coronel Mário Maio, diretor da “Prova Zero”, apresentou um incidente de recusa da procuradora por entender que esta tinha violado os princípios “da imparcialidade, da correção, da urbanidade, do respeito” ao tratar os Comandos como “uma associação de criminosos”, Lucília Gago, chamada a pronunciar-se sobre a procuradora, não a deixou cair.
Esse caso é, de resto, sintomático do perfil que todos traçam à nova procuradora-geral da República (PGR), que Marcelo Rebelo de Sousa nomeou, sob proposta do Governo. A sucessora de Joana Marques Vidal no mais alto cargo do Ministério Público (MP), que exerce as funções de procuradora-geral-adjunta desde o ano passado, é, aos 62 anos de vida e 37 de carreira, conhecida pela sua capacidade de construir pontes, mesmo quando discorda da perspetiva daqueles com quem trabalha. No fundo, explicam, é uma conciliadora.
Celso Manata, diretor-geral de Reinserção e Serviços Prisionais, recorda que conhece a nova PGR desde 1982, quando Lucília Gago ainda exercia funções nas varas criminais de Lisboa, na Boa Hora. “É uma pessoa extraordinariamente competente. Quando emite uma opinião, já fez uma pesquisa muito grande sobre os assuntos. Gosta de trabalhar em equipa. É muito exigente, desde logo consigo própria. Tem uma grande capacidade de resistência, o que é muito importante para estas funções. Fico contente por ela e porque ela será a minha superior hierárquica quando terminar a minha comissão de serviço”, diz à VISÃO, lembrando que Lucília Gago também foi sua coordenadora no Tribunal de Família e Menores de Lisboa e que também mantiveram contacto regular no Centro de Estudos Judiciários (CEJ), onde a recém-nomeada PGR dá aulas.
A facilidade com que gera consensos ou, pelo menos, aproximações é mesmo uma das características que Manata mais gaba à PGR. E até ilustra com um episódio, com o devido distanciamento temporal, quando Francisca van Dunem, de quem Lucília Gago é bastante próxima, ainda não desempenhava funções governamentais. Na época em que a ministra da Justiça era procuradora-geral distrital de Lisboa, organizou um encontro de reflexão de magistrados que trabalhavam na área de família e menores na capital. Lucília Gago foi a escolhida para o organizar. “Esse encontro foi tão importante, e correu tão bem, que depois foi reproduzido ao nível das outras jurisdições. Nem sempre é fácil gerir reuniões de magistrados e ela fazia-o com uma grande diplomacia”, complementa Manata.
No universo da política, esse talento também é enaltecido. Entre 2014 e 2015, Lucília Gago coordenou a Comissão Legislativa de Revisão do Regime Jurídico do Processo de Adoção e o ministro que a nomeou, Pedro Mota Soares (CDS) – que não a conhecia, mas recebeu muitas recomendações de quem dominava a agenda dos direitos da criança – não lhe regateia elogios.
“Pedi para ter uma conversa com ela, fiquei muito bem impressionado pelo conhecimento do sistema e, acima de tudo, daquilo que era preciso mudar e melhorar. Fiz-lhe o convite para liderar a comissão técnica, que tinha representantes da Segurança Social, da Justiça e de todos os intervenientes no processo, e sei que fizeram um trabalho muito sério, com bom resultado, e que levou à alteração da lei da adoção e da proteção de menores”, conta o ex-titular da pasta da Solidariedade, Trabalho e Segurança Social. Mota Soares também não esquece as lacunas no quadro legal que a nova PGR logo detetou: a comunicação entre os diversos serviços do Estado, a definição de prazos máximos para a conclusão dos processos ou a extinção do chamado vínculo biológico.
Manuel Coutinho, secretário-geral do Instituto de Apoio à Criança, atesta essas competências: “É uma amiga das causas defendidas pelo instituto. Nos diferentes lugares de responsabilidade que tem desempenhado, e aos quais tem emprestado o seu saber, tem contribuído decisivamente para que a criança seja considerada por todos um sujeito de direito, um ser humano autónomo a quem toda a sociedade deve prestar proteção especial.”
Quem a conhece da esfera judicial apresenta uma versão similar: Lucília Gago é discreta, serena, determinada e alguém a quem não se pode dizer “sempre se fez assim…” como argumento para que tudo fique na mesma. Daí, explicam, talvez derive a intolerância para entraves burocráticos, escassez de meios ou para alguns colegas. “Ela não estava para aturar chatices”, diz uma fonte judicial, que destaca que a saída prematura do DIAP ainda carece de explicações e também ironiza sobre a impaciência para fazer horários mais distendidos: “Agora não vai poder ser das 9h às 17h…”
Júlio Pina Martins, procurador coordenador da comarca de Setúbal e ex-coordenador das Varas Cíveis de Lisboa, salienta que Lucília Gago é “honestíssima”, pelo que não lhe conhece “nenhuns rabos-de-palha”. Mas vai mais longe ao vincar que o facto de “já conhecer a casa e o funcionamento do sistema” pode ser uma vantagem, até mesmo para alguém que já foi magistrada de comarca, “com competência genérica”, ou seja, que “sabe fazer tudo”.
O caráter de Lucília Gago, sustenta igualmente João Palma, ex-presidente do Sindicato dos Magistrados do MP, é algo que também não pode ser posto em causa. Exemplo: quando foi publicada no site da Presidência da República a nota da nomeação, circulou pelas redes sociais uma imagem de um jantar de José Sócrates com alguns dos seus indefetíveis apoiantes e começou a difundir-se a ideia de que seria a nova PGR. Nada mais errado, até porque a senhora da imagem é bastante mais nova do que Lucília Gago. No entanto, João Palma sai em defesa da “pessoa séria e competente” que diz conhecer: “Tenho a certeza de que não participaria em jantares daqueles…”
Já Eurico Reis, juiz desembargador do Tribunal da Relação de Lisboa e antigo presidente do Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida, recorda Lucília Gago como sua delegada no 1º Juízo Cível, no Palácio da Justiça, na década de 1990, e enfatiza a “pessoa de coragem”, que “não admite faltas de respeito”. “É muito senhora do seu nariz. Se há partidos ou pessoas à espera de alguma coisa, desenganem-se. A Lucília vai fazer o caminho dela sem se deixar influenciar”, previne.
Por outro lado, condena os vários recados que têm vindo a ser dados em praça pública no sentido de condicionarem ab initio o seu trabalho. “O que me choca é já estarem a dizer o que ela tem de fazer. Está a ser feita uma pressão como nunca vi antes. É uma pressão despropositada e inaceitável, que não vi sequer quando houve a substituição de Cunha Rodrigues, que também teve um papel importante no funcionamento da Justiça. Sobretudo porque ela não merece isso, ela tem competências para saber o que fazer sozinha”, advoga, sem mencionar em concreto processos como a Operação Marquês.
Avessa aos holofotes mediáticos, pouco se conhece da vida pessoal de Lucília Gago. Apenas que é casada com outro procurador, Carlos Gago, outrora um destacado membro do PCTP/MRPP e antigo número dois da Polícia Judiciária (PJ) na direção de Luís Bonina e Fernando Negrão. Tem dois filhos, ambos na casa dos 30 anos.
Se a discrição é a pedra-de-toque da nova PGR, há quem sugira que Lucília Gago terá de fazer alterações à sua mecânica, sob pena de ser atropelada pela máquina judicial ou ultrapassada pela voracidade da comunicação social. Um inspetor da PJ que se cruzou com a agora PGR em inúmeras investigações carrega na caracterização: “É um Mercedes a diesel, e sem turbo…” Marcelo Rebelo de Sousa e António Costa arriscaram muito com a nomeação, e já há quem aposte que o topo do MP venha a precisar de revisão mais cedo do que se pensa.
O percurso da nova PGR
– A 26 de agosto de 1956 nasceu, em Lisboa, Maria Lucília das Neves Franco Morgadinho Gago
– Em 1978, licenciou-se pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e, dois anos depois, ingressou no Centro de Estudos Judiciários (CEJ)
– A partir de 1981, foi delegada do procurador da República e, em 1994, foi promovida a procuradora da República, com funções no DIAP de Lisboa e no Tribunal de Família e Menores de Lisboa
– Entre 2002 e 2005, foi procuradora coordenadora dos magistrados do Ministério Público do Tribunal de Família e Menores de Lisboa, e, em 2005, ascendeu a procuradora-geral-adjunta, exercendo funções até 2012, na Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa
– Entre 2012 e 2016, também na área da família e menores, foi docente e coordenadora no CEJ
– Em 2016 e 2017, foi diretora do DIAP de Lisboa
– Desde o ano passado, exerce funções na Procuradoria-Geral da República, onde criou e desenvolveu um gabinete na área da família, da criança e do jovem