Num discurso surpreendente, durante a homenagem que lhe foi prestada, este domingo, em Sernancelhe, o ex-Presidente da República e antigo primeiro-ministro, Aníbal Cavaco Silva, proclamou que “basta de autoestradas”. Diz Cavaco que “o País não precisa de mais autoestradas, gimnodesportivos ou campos de futebol”. Para concluir: “Do que Portugal precisa é de crianças.”
A benção de Cavaco a, presume-se, novas políticas de natalidade – o antigo PR desafia os políticos a convencerem os portugueses a terem mais filhos – surge poucas semanas depois de a questão ter sido colocada na agenda pelo novo presidente do PSD, Rui Rio, que anunciou a proposta de um pacote de medidas de incentivo à natalidade. Mas a ironia da História coloca na boca do principal rosto da década de betão, Cavaco Silva, o contraponto das “malditas autoestradas” que, supõe-se, desviarão recursos que devem ser canalizados para estas novas políticas de apoio às famílias.
Justiça se lhe faça: quando, em 1985, pela primeira vez, Cavaco ocupou a cadeira de chefe de Governo, o País precisava, como de pão para a boca, de modernas vias rodoviárias de comunicação. A maior e quase única autoestrada do País não ligava, sequer, as duas principais cidades. Vai daí, durante os dez anos a que presidiu aos destinos nacionais, os Governos de Cavaco Silva inauguraram 1133 quilómetros de autoestradas, itinerários principais e itinerários complementares.
A “política do betão”, que foi muito criticada, por alguns setores, por absorver os recursos dos fundos estruturais europeus, em detrimento de políticas de educação ou inovação ou, lá está, de apoio às famílias, acabou por dar início ao polémico processo das parcerias publico-privadas – as famosas PPPs – e alimentar uma nova classe empresarial e política a que, tendo por bandeira as obras públicas, se chamou o “cavaquismo”. Agora, segundo Cavaco, já chega.
Da Agricultura ao Mar
Não é a primeira vez que o antigo primeiro-ministro assume o carinho por áreas que foi acusado de desprezar, enquanto governante. No discurso do 10 de junho de 2013, elegeu a Agricultura como um grande desígnio nacional. Isto, depois de ter sido acusado de acabar com a agricultura portuguesa, obrigando os agricultores a receberem subsídios para deixarem de produzir. Houve um bruá de indignação, mas, mais uma vez, deve ser-lhe feita justiça, mau grado a forma desastrada como comunicou, nesse 10 de junho, o súbito amor pela lavoura. De facto, a agricultura portuguesa, tal como a conhecíamos, de subsistência, mal apoiada tecnicamente, mal gerida e envelhecida, acabou no tempo do cavaquismo. Anos depois, porém, surgiu renovada por novas abordagens e novos produtores, agora feitos empresários, que alargaram a área arável, revolucionaram os métodos de produção e aumentaram a produtividade e as exportações, embora, apenas, nalguns nichos de mercado e numa gama restrita de produtos.
Nesse discurso, Cavaco afirmou que isso se deveu à PAC (Política Agrícola Comum) subscrita pelos seus governos, – mas a verdade é que não governou o suficiente para ver qualquer resultado e só muitos anos depois de ter abandonado a governação é que a agricultura portuguesa voltou a respirar. Os méritos devem ser, no mínimo, repartidos com outros governos – como o de António Guterres, que levou para a frente o Alqueva… – e, sobretudo, com a resiliência, imaginação e capacidade de adaptação dos produtores nacionais.
O caso do mar foi outro dos seus amores serôdios, que causaram estranhesa, sobretudo, entre as comunidades piscatórias que, durante o cavaquismo, tiveram de abater embarcações de pesca, desmantelando, praticamente, a frota nacional. Todavia, em 2010, nas vésperas de um outro 10 de junho, celebrado no Algarve, Cavaco falou da relação umbilical do algarvio com o mar. Essa sua bandeira, transformada, já em Belém, em novo desígnio nacional, motivou, até, o convite de António Costa para que o então Chefe do Estado presidisse ao último conselho de Ministros reunido durante o seu mandato e que foi dedicado, precisamente, aos assuntos do mar. Decorreu este em ambiente distendido, a 3 de março de 2016, no Forte de São Julião da Barra, em Oeiras.
Por uma daquelas estranhas coincidências que costumam anunciar o “azar dos Távoras” – ou com um sentido de oportunidade similar ao que revelou, algumas vezes, durante os mandatos de Presidente… – Cavaco pediu que não se construíssem mais autoestradas no próprio dia em que foi conhecido o projeto de intervenção no IP3, hoje considerado uma espécie de “estrada da morte”, devido à elevada sinistralidade: a conhecida ligação entre Coimbra e Viseu sofrerá uma profunda remodelação que transformará o percurso… numa autoestrada.