Dois meses antes de Londres ter entregue os papéis do divórcio, já o Governo ultimava um guião detalhado para Portugal se preparar para a saída britânica da União Europeia (UE). Aos ministérios portugueses foi pedido que respondessem a seis perguntas que resultaram no documento “Brexit: elementos de reflexão sobre a posição portuguesa”, a que a VISÃO teve acesso. Da política de imigração até à fatura financeira, passando pelo reconhecimento de qualificações profissionais, os 16 ministérios identificaram as fragilidades, os objetivos portugueses na negociação do divórcio – que começou a 29 de março e deve prolongar-se por 24 meses –, mas também as muitas oportunidades que surgem com o ‘apagão’ britânico.
De um lado está sempre presente a revisão em alta dos envelopes financeiros de Portugal, que também será chamado a preencher o ‘buraco’ deixado pelo Reino Unido, um dos maiores contribuintes da UE, seja no orçamento comunitário, nos projetos de defesa ou nos programas da ciência. Outro ‘buraco’ está ligado à dimensão geopolítica do Reino Unido, membro do Conselho de Segurança da ONU, e ao seu músculo militar, um dos mais consistentes da UE. O adeus a Londres pode, de acordo com o ministério de Augusto Santos Silva, enfraquecer a “visão atlântica” dentro da união. Ao mesmo tempo, os equilíbrios internos dentro da própria União Europeia também se alteram na hora de decidir e votar políticas. A maioria qualificada passa de 16 Estados-membros e 280,5 milhões de pessoas para 15 países e 244,5 milhões.
Mas o Brexit também traz vantagens. O Governo português está bastante atento ao provável êxodo de entidades financeiras e de empresas sediadas no Reino Unido para o lado de cá do Canal da Mancha, uma vez que Theresa May já assumiu que o país fica fora do mercado único de mais de 400 milhões de pessoas. Para lá das agências europeias – como a do Medicamento, à qual Lisboa já se candidatou –, também existe a oportunidade de um comando operacional ficar em Portugal e do País atrair, por exemplo, a indústria de ’outsourcing’.
As prioridades na atração de investimento, definidas pela Aicep no documento, incluem ainda os serviços financeiros (fintech) e a banca de investimento. O Governo aprovou, entretanto, a criação de uma unidade de missão especial para o Brexit, liderada por Bernardo Trindade e que conta também com Chitra Stern e Gonçalo Lobo Xavier – figuras com um perfil mais virado para a indústria do turismo que para o setor financeiro.
Sem cálculos próprios, o MNE cita um estudo da Euler Hermes (de maio de 2016) para estimar que o Brexit terá um “impacto significativo” de curto/médio prazo em Portugal. No cenário mais favorável, de uma saída britânica suave, o divórcio pode custar 400 milhões de euros entre 2017 e 2019 à economia portuguesa, cerca de 0,2% do PIB. O Reino Unido foi, em 2016, o quarto maior cliente dos produtos ‘made in Portugal’ e, segundo a Euler Hermes, as exportações podem “registar um decréscimo na ordem dos 200 milhões de euros”. Nos serviços e no investimento direto britânico, o impacto será na ordem dos cem milhões em cada uma das rubricas. No comércio bilateral, a máquina portuguesa precisa ter “em mente”, de acordo com o documento, que “25% do volume das exportações portuguesas para o Reino Unido é assegurado por apenas oito empresas; e 88% por 440 empresas”.
Entre mais de 300 páginas, a VISÃO selecionou os principais riscos e benefícios assinalados pelos ministérios. Saiba quais:
Ministérios dos Negócios Estrangeiros
•Com o Brexit, o MNE afirma que “desaparece um “travão” ao desenvolvimento de capacidade autónomas de defesa da UE”. Ao mesmo tempo, o orçamento da Política Externa e Segurança Comum (PESC) pode sair “afetado”, dado que Londres tinha uma “postura simultaneamente informada, pragmática, criteriosa e avessa a despesismos injustificados”.
• Na relação com Moscovo pode existir uma perspectiva mais “contemporizadora”, como defendem em diferentes variáveis países como Itália, França ou Espanha. Portugal partilha desta posição, pelo que o Brexit poderá representar maior abertura para uma política de “engagement”.
• A saída do Reino Unido poderá porventura implicar um decréscimo da visibilidade da África anglófona. Entre os PALOP, o Brexit pode ter efeitos nefastos, especialmente no caso de Cabo Verde e, em menor grau, de São Tomé e Princípe.
Ministério das Finanças
• A saída do Reino Unido abre um ‘buraco’ financeiro no orçamento comunitário na ordem dos 10-12 mil milhões de euros. As Finanças estimam que Portugal passe a pagar “1.800,5 milhões de euros de recursos próprios”, o que elevaria a contribuição portuguesa de 1,29% para 1,44%.
• Negociar os ‘direitos de passaporte’ – o acesso das entidades financeiras, sediadas no Reino Unido, ao mercado europeu. Uma questão “relevante” para Portugal, uma vez que na emissão de dívida pública nacional a maioria dos ‘primary dealers’ têm a sua base no Reino Unido.
• Sem um ‘passaporte europeu’, os prestadores de serviços de pagamento do Reino Unido têm de se deslocalizar para território europeu. “Portugal poderá eventualmente beneficiar” do Brexit neste caso, dado que pode ser um país recetor de centros de competência ou centros de serviços como aconteceu com o BNP Paribas ou com o Natixis. Segundo dados de setembro de 2016, existiam “223 instituições de pagamento e 57 instituições de moeda eletrónica do Reino Unido autorizadas a atuar em Portugal ao abrigo do passaporte europeu”, que representa, 70% deste tipo de prestadores de serviços de pagamento.
Ministério da Defesa
•Revisão em alta das contribuições portuguesas em matéria de defesa, como a Agência Europeia de Defesa, o mecanismo de financiamento das despesas comuns relacionadas com as operações militares da UE (Athena) e do centro de satélites (SatCen). O Reino Unido, por exemplo, é responsável por 14% dos orçamento da EDA.
• Operações marítimas da União Europeia, como a Operação Atalanta, têm sido comandadas a partir de quartel-general de Northwood, Reino Unido. Portugal pode ponderar candidatar-se a acolher uma estrutura de comando operacional após o divórcio.O País também pode “ter interesse em considerar o reforço da representação nacional” nas vagas deixadas pelos britânicos no Serviço Europeu de Ação Externa, Comité Militar e Estado-Maior da União Europeia.
Ministérios da Administração Interna
• A partilha de informação sobre registos criminais com o Reino Unido adivinha-se “mais limitada” no futuro.
• A GNR antecipa “algumas dificuldades” na notificação de um condutor do Reino Unido que não cumpra as regras do código da estrada em Portugal.
• Marcas, desenhos, modelos, denominações de origem e indicações geográficas concedidas à escala da União Europeia deixam de de produzir efeitos em território britânico.
Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior
O programa Erasmus e a mobilidade de professores universitários deixa muitas questões em aberto no processo de Brexit. O Reino Unido é o país com maior número de estudantes portugueses – 2730 estavam a estudar em terras de Sua Majestade no ano letivo 2014/15 contra os 235 britânicos em Portugal no ano 2015/16.
• As propinas no Reino Unido devem aumentar 10% e, por isso, prevê-se menos 57% de estudantes da UE naquele país. Se é uma má notícia para os estudantes portugueses, pode ser uma situação “vantajosa” para as instituições de Ensino Superior na atração de novos estudantes. Hoje os estudantes comunitários pagam tanto de propinas como os britânicos, 11 500 euros, e são elegíveis para bolsas e apoios. Os estudantes estrangeiros pagam propinas na ordem dos 25 mil euros.
• O ministério considera existir um risco elevado de restrições no acesso a bolsas de estudo e ao sistema de empréstimos. Se a liberdade de circulação for condicionada é possível a introdução de vistos para estudo ou trabalho, no caso dos investigadores e docentes.
• Londres deve reduzir a comparticipação financeira no Erasmus + e precipitar um menor intercâmbio de estudantes e docentes nos programas de mobilidade.
• O não reconhecimento de qualificações profissionais é outro risco “moderado” identificado pelo ministério. Aliás, assegurar o processo de equivalências de escolaridade é uma das áreas a acompanhar com atenção.
Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social
•Grande impacto esperado nos direitos sociais dos trabalhadores de outros Estados-membros. O Reino Unido é hoje o principal destino da emigração portuguesa e palco de uma comunidade de cerca de 250 mil mononacionais, que atinge no total 400 a 500 mil pessoas. No caso de uma ‘hard Brexit’, os regulamentos da UE sobre coordenação de segurança Social deixariam de se aplicar, com “claro prejuízo para os trabalhadores” portugueses.
•Londres tem reafirmado o objetivo de reduzir a imigração de cidadãos europeus. O ministério prevê “uma maior burocratização nos procedimentos de entrada” no Reino Unido e não descarta que a UE adote um regime com o qual se comprometeu com o Reino Unido, em fevereiro de 2016, antes do resultado do referendo o ter anulado. Esse regime seria “um retrocesso dos direitos garantidos atualmente pelos regulamento europeus”.
Ministério da Saúde
•O Brexit pode ser “desmotivador da saída de profissionais” portugueses para o Reino Unido. O ministério estima que haja 600 técnicos de diagnóstico e terapêutica entre 2015 e 2016 no país.
• Decidir qual o modo de acesso dos cidadãos britânicos a residir em Portugal aos cuidados de saúde.
Ministério do Planeamento e das Infraestruturas
• A dotação que Portugal recebe em fundos estruturais para as regiões menos desenvolvidas “poderá vir a ser reduzida”. Com a saída do Reino Unido o PIB per capita médio da UE cai e, assim, o “PIB per capita das regiões portuguesas aumentará em relação à média comunitária” e “passarão a ter uma intensidade de apoio menor”.
• Uma potencial vantagem é Portugal ser “considerada a opção mais viável, estratégica e geograficamente, para que as transportadoras aéreas do Reino Unido se estabeleçam” no mercado interno europeu.
• Num cenário de saída abruta, a principal consequência será a “inviabilização imediata do funcionamento de todo o mercado da aviação civil entre Portugal e o Reino Unido, só recuperável com as negociações bilaterais futuras”.
Ministério da Economia
• Se o Reino Unido adotar uma nova pauta aduaneira, 79% das exportações nacionais “passariam a estar sujeitas a direitos, penalizando fortemente a sua competitividade no mercado“ britânico. Cerca de 38% das exportações nacionais teriam mesmo os escalões de direitos mais elevados, acima de 10%, como vestuário, automóveis, conservas de atum ou tabaco. Mas “40% dos produtos britânicos importados por Portugal continuariam a entrar no mercado nacional isentos de direitos”, como sejam os químicos, incluindo os medicamentos, os metais comuns e máquinas e aparelhos.
•”Potencial para o aumentos da competitividade dos produtos nacionais face aos seus concorrentes britânicos”, como cerâmicas e vidros, metais, veículos automóveis – componentes e acessórios –, vestuário, têxteis-lar, calçado, vinho e tabaco.
Ministério da Agricultura
•A saída britânica vai pressionar os contribuintes líquidos da UE a “defender uma maior redução dos apoios da Política Agrícola Comum (PAC)”, em particular “nos apoios ao Desenvolvimento Rural”. O Reino Unido contribui com 5% para as rubricas da PAC e o Brexit abre um ‘buraco’ na ordem dos 2,9 mil milhões de euros por ano.
Ministério do Mar
•Reino Unido, maior produtor aquícola da UE, volta a assumir a soberania na gestão dos recursos marinhos no território e vai colocar-se a questão do “acesso dos navios da UE às águas” britânicas e vice-versa. Mais de metade das capturas na Zona Económica Exclusiva (ZEE) britânica é realizada por outros Estados-membros.
•O Reino Unido é um “contribuinte muito relevante” para a Política de Pescas Comum. “Portugal pode vir a ser um dos Estados-membros mais afetados, juntamente com Espanha e França”.
• Contrariar os “possíveis impactos negativos da saída do Reino Unido sobre o acordo de pescas UE-Noruega”.