Recentemente tive oportunidade de partilhar algumas ideias sobre a temática da liberdade religiosa, com juristas e religiosos, numa conferência internacional na minha universidade. Foi uma excelente oportunidade para reflectir sobre democracia, tipos de perseguição religiosa, laicismo e laicidade.
O nosso mundo contemporâneo é profundamente complexo, violento e injusto. Como alguém disse, tornou-se num “lugar mal frequentado”. A sua complexificação decorre de inúmeros factores como a globalização, as migrações ou a emergência climática. Já a violência está presente nos conflitos bélicos recorrentes, na conflitualidade social e nos abusos de toda a ordem. E sobre a injustiça vale a pena recordar “esta economia que mata”, no dizer do papa Francisco, ou o facto de, depois de cada crise (seja de que natureza for), os ricos ficarem invariavelmente mais ricos e os pobres mais pobres.
Mas afinal o que tem a liberdade religiosa que ver com tudo isto? Tem muito, porque a sua falta produz efeitos penalizadores na saúde, na economia, na cultura, na educação, no sistema de justiça, na promoção da paz e na coesão social dos povos.
Todos os observatórios que acompanham a liberdade religiosa no mundo são unânimes em confirmar que há um problema a nível global nesta matéria. Os relatórios publicados periodicamente indicam um agravamento geral persistente, constante e transversal ao espectro religioso. Muçulmanos que perseguem cristãos, cristãos que perseguem umbandistas e candomblecistas, sunitas que perseguem yazidis e baha’is, hindus e budistas que se perseguem mutuamente. Mas a intolerância sucede dentro das próprias religiões: entre
sunitas e xiitas, tal como no passado próximo entre católicos e protestantes na Irlanda do Norte ou séculos atrás nas guerras religiosas na Europa.
O princípio de o estado não se dever identificar com nenhuma religião em especial é muito importante para a observância da liberdade religiosa, por não favorecer nenhuma delas e todas coexistirem em pé de igualdade. Todavia, a sociedade não é nem tem que ser laica. Uma sociedade livre e democrática estribada num estado de direito será sempre uma paleta de muitas cores religiosas e espiritualidades, sem descriminações, no respeito e aceitação da diferença.
Apesar de em muitos lugares do globo não prevalecer o princípio do estado laico, por justificações religiosas ou mero ateísmo, a verdade é que mesmo muitas democracias e estados de direito estão hoje a deixar corroer este princípio. Uma coisa é a garantia constitucional da neutralidade do estado em matéria religiosa, outra é a sua praxis, que muitas vezes não coincide com esse valor constitucionalmente consagrado e afecta as minorias religiosas, desde o acesso a espaços de culto à educação, ao trabalho social e a tantas outras áreas da vida pessoal e comunitária.
Por outro lado, vemos uma tendência preocupante por parte das religiões, quando reclamam liberdade ou igualdade de tratamento por parte dos poderes públicos, nas regiões do mundo em que são minoria, mas depressa esquecem os princípios de equidade nos locais onde mantêm uma expressão maioritária. Não podemos ter dois pesos e duas medidas.
Talvez seja esta miopia, tanto dos estados como das tradições religiosas, que leva a Agenda 2030 da ONU com o lema “Para transformar o Mundo em nome dos Povos e do Planeta” a omitir nos seus 17 Objectivos o importante eixo da Liberdade Religiosa, até porque esta está ligada, directa ou indirectamente a pelo menos cerca de metade desses Objectivos.
Ou talvez se trate apenas de manifesta impotência perante o caso de inúmeros países do mundo que não concebem a existência do estado separado da religião, e confundem estado e sociedade como se fossem um só. E esta realidade acaba por dar alguma razão a Durkheim quando afirmava que “A religião não é apenas um sistema de ideias, é antes de mais um sistema de forças”.
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