Mas é facto que os povos parece que andam sempre à espera de alguém que decida por eles. Pelo menos desde o século XVI que entre nós a pecha do providencialismo assumiu o nome do “sebastianismo”, que abriu caminho à desgraça da perda de soberania para os espanhóis e a sessenta anos de filipismo. De facto, foi a morte de D. Sebastião em Alcácer Quibir e o facto de não ter deixado descendência que deu origem à crise dinástica que sentou os reis de Espanha no trono português.
Em tempo de paz, numa democracia consolidada e no espaço europeu não faz qualquer sentido ter um militar como presidente da república. Por isso dispenso sebastianismos, sobretudo militares. O general De Gaulle foi o grande inspirador da resistência francesa ao nazismo, a partir de Londres, por isso fez sentido vir a ser chefe de estado em França logo depois da II Guerra Mundial. Eanes foi homem do 25 de Abril e do 25 de Novembro, por isso foi eleito à primeira volta por duas vezes e foi ele que enviou os militares de volta para os quartéis. Mas agora, querer um militar em Belém em pleno século XXI é fazer do país uma caserna.
Nada tenho contra as Forças Armadas (FAA). Cumpri o serviço militar obrigatório, mas há que encarar o problema de frente. Nenhum político com aspiração a ser governo fala disto, mas as FAA precisam de ser urgentemente reformuladas e redimensionadas. São uma espécie de monstro com uma cabeça de gigante para um corpo de anão. O número de oficiais generais está exageradamente sobredimensionado.
Por exemplo, temos mais “almirantes” do que navios. Isto é, cerca de 50 oficiais generais na Marinha para apenas 30 navios, alguns deles são pequenas embarcações, ou não dispõem do equipamento devido ou estão velhos demais para poder navegar e cerca de 7 mil efectivos militares. Que sentido faz isto? Bem sei que herdámos umas FAA vindas de três frentes de guerra em África, mas entretanto acabou o Serviço Militar Obrigatório e ficámos com oficiais generais “para dar e vender”, só que já lá vai quase meio século e continuamos praticamente na mesma situação. Os políticos têm receio de afrontar a instituição militar, tal como evitam entrar em choque com outros tipos de poderes.
Gouveia e Melo fez um bom trabalho no processo de vacinação COVID-19. Logo na altura houve vozes a querer empurrá-lo para uma candidatura à presidência. Pareceu-me então que ele sacudiu a ideia. Agora já não gosto do que vejo. Quer-me parecer que está em plena campanha de promoção de imagem para ir a CEMGFA e daí tentar Belém. É que entretanto alguma coisa lhe subiu à cabeça. Mas as coisas não estão a correr bem.
É claro que muita gente cheia de boas intenções vai caindo no canto da sereia da extrema-direita, na aspiração do homem providencial. Os brasileiros tiveram o seu “mito” e os americanos o seu “homem de sucesso”, mas o resultado foi o que se viu.
A imagem que resvala para o autoritarismo, do tipo “pôr isto tudo na ordem”, não compagina com o jogo democrático, nem com o regular funcionamento das instituições. A ideia de que os políticos precisam de ser postos na ordem é populista e altamente perigosa. Já vimos este filme em 1926 e durante todo o Estado Novo. A presidência da república é um cargo político e não um posto militar e só em casos históricos muito específicos será conveniente que o país chame para aí um homem fardado.
O que os políticos precisam é de ser escrutinados pela comunicação social, pelas instituições democráticas e pelas populações, e de prestarem contas periodicamente na ida dos eleitores às urnas, o que apenas pode suceder em democracia, através de eleições livres.
Dispensam-se homens providenciais e sebastianismos bacocos. O que faz falta é que os cidadãos cumpram os seus deveres, estejam atentos à coisa pública e que as instituições funcionem.
Há ano e meio escrevi aqui, sob o título “Deixem o vice-almirante em paz!”: “Só há uma coisa de que as pessoas gostam mais do que de fabricar heróis: é deitá-los por terra na primeira curva da estrada. Se Gouveia e Melo cair na asneira de entrar na política vai arrepender-se depressa.” Continuo a pensar exactamente do mesmo modo. Era bom para ele e para as FAA que Gouveia e Melo se colocasse claramente fora da corrida a Belém. Caso contrário vamos ter problemas pois um país não é um quartel.
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