Quem conhece o evangelho sabe que a fé cristã passa por não amar o mundo. O apóstolo João adverte: “Não ameis o mundo, nem o que no mundo há. Se alguém ama o mundo, o amor do Pai não está nele” (1 João 2:15). Mas qual é o conceito de “mundo” de que fala o Novo Testamento?
Não é certamente a humanidade, pois Deus ama-a com amor sacrificial. A verdade é: “Deus amou o mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigénito, para que todo aquele que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna” (João 3:16). O “mundo” citado na epístola joanina refere-se ao pensamento e forma de agir das sociedades, que têm arrastado a humanidade ao longo da história para a guerra, a destruição, o crime, o egoísmo, a injustiça e as agressões ambientais. Afinal, este é o “mundo” que não se deve amar.
Não amar o mundo não significa não viver nele.
Jesus Cristo foi categórico na célebre oração sacerdotal em favor dos seus discípulos, onde insiste: “eles estão no mundo” (João 17:11), para logo de seguida pedir: “Não peço que os tires do mundo, mas que os livres do mal” (v15). Os cristãos estão no mundo (secular) embora a sua pertença essencial seja outra (espiritual). Portanto, mantêm intactas todas as suas responsabilidades de cidadania na sociedade, o que remete para uma consciência cívica e intervenção política.
Não amar o mundo não significa não o tentar compreender.
O Mestre ensinou os seus seguidores a procurar compreender cada indivíduo no seu quadro de referências. Foi o que fez com a (chamada) mulher adúltera, com a samaritana, com o centurião romano cujo escravo estava gravemente doente, com a mulher sírio-fenícia, com Nicodemos e com tantos outros. Essa compreensão passa obviamente por respeitar as suas opções, mesmo quando não concordamos com elas. Foi por isso que enviou os setenta discípulos recomendando-lhes: “E tantos quantos vos não receberem, nem vos ouvirem, saindo dali, sacudi o pó que estiver debaixo dos vossos pés, em testemunho contra eles” (Marcos 6:11). A natureza do evangelho não permite que ele seja imposto, mas apenas proposto.
Não amar o mundo não significa não amar as pessoas do nosso mundo, sendo sensíveis ao seu sofrimento e condição.
O próprio Jesus interessou-se sempre pelos mais frágeis e socialmente marginalizados. A sua primeira atenção foi invariavelmente para com os pobres, os doentes, os portadores de deficiência física, os mentalmente perturbados, os rejeitados, como os leprosos e os menosprezados pela sociedade patriarcal como as mulheres.
Hannah Arendt defendia a ideia de amar o mundo. Para a autora de “As Origens do Totalitarismo”, “estar no mundo significa estar com”. Quando Hannah lecionava “História da Teoria Política” afirmava que “quem escreve sobre política ama o mundo, o mundo dos pragmata ton athropon (o mundo dos assuntos humanos)”, o que significa que esse tipo de amor é sobre um esforço de compreensão e reconciliação de nós próprios com o mundo tal como ele é.
A intelectual judia que fugiu do nazismo, chegando de comboio a Lisboa em 1941 e embarcando num navio três meses depois a caminho de Nova Iorque, defendia assim o Amor Mundi, pelo menos desde que escreveu «A Condição Humana». Para ela, amar o mundo requer que ajustemos contas com ele, pelo que necessitamos de nos distanciar um pouco das nossas experiências pessoais a fim de reflectirmos para podermos “contar uma história sobre elas.”
João Evangelista adverte-nos para que rejeitemos a filosofia predominante num mundo sem Deus, mas o evangelho estimula-nos a estar no mundo com os dois pés, cumprindo as nossas responsabilidades cívicas na polis. Encoraja-nos ainda a amar as pessoas e compreendê-las no seu contexto. Afinal, o Amor Mundi da judia Hannah Arendt é muito semelhante à pormenorização prática e operacional das propostas da fé cristã e do exemplo de vida do próprio Jesus de Nazaré.
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