O acto de interrupção inopinada do espectáculo de teatro “Tudo Sobre a Minha Mãe”, no São Luiz, em Lisboa, por uma performer transexual brasileira foi grave por várias razões. Por muito que se queria compreender a discriminação das minorias, incluindo os transexuais, a verdade é que se estes optarem por subverter o funcionamento da sociedade só terão a perder, pois a afirmação dos direitos e a sua reclamação não se faz pela sonegação dos direitos alheios.
O que se passou não foi mais do que uma falta de consideração e respeito pelo trabalho dos actores e encenador, mas também pelo público. O que vimos foi uma pessoa seminua interromper um espectáculo de forma abusiva, malcriada, agressiva e pretensiosa. Atacou trabalhadores das artes que estavam a desempenhar a sua profissão. A ideia que dá é que quis provocar um golpe publicitário, ao apresentar-se pelo nome artístico, mas caiu logo em contradição ao afirmar que se prostituía porque não lhe davam trabalho como actriz trans, dizendo mais adiante que se a tivessem chamado faria aquela peça de borla.
O que se passou foi uma subversão completa do que são as artes de palco ou não é suposto que um actor represente personagens naturalmente diferentes daquilo que é como pessoa? Não é suposto que o cerne da arte do teatro desde os gregos passe justamente por aí? Se há milénios se usavam máscaras, agora o próprio actor – a sua fala, linguagem, corpo, modo de estar, expressão facial e corporal – é a sua “máscara” para representar uma pessoa que ele não é na realidade. Carlos Drummond de Andrade dizia que “ir ao teatro é como ir à vida sem nos comprometermos”. Não é isto, afinal, o sentido do acting?
Para lutar por aquilo que considero serem os meus direitos eu não posso espezinhar os direitos dos outros. O actor contestado foi humilhado, assim como todo o elenco. A direcção artística cedeu à chantagem e retirou a personagem ao actor, que se sentiu “violentado e castrado” na sua arte e no seu trabalho, e embora seja totalmente a favor da “igualdade de oportunidades, de direitos e da inclusão no trabalho não só nas artes”, mas na sociedade em geral, embora não possa concordar com a violência ou a invasão do palco. E sublinha que “não é com desrespeito e injustiça que se consegue respeito e justiça.”
Este é um dos problemas que os estados de direito democrático enfrentam, a mudança de comportamento das minorias sociais, religiosas e políticas. O sentimento de revolta decorrente da injustiça de que se é alvo tem levado algumas minorias a agir de forma violenta, atropelando assim direitos alheios. Nos regimes autocráticos e ditatoriais nem sequer podem manifestar-se ou reivindicar direitos, mas em democracia têm voz, fazem lobbying, manifestam-se e exigem, porque a natureza do regime e a observância dos direitos humanos o permitem e bem.
Mas nos últimos tempos parece que o que está a dar é subverter as regras em benefício próprio, por vezes mesmo com violência, independentemente de tal acção poder afectar direitos alheios. As minorias sexuais, religiosas, políticas e sociais têm todo o direito a manifestar-se sempre que sofram discriminação por parte das maiorias. Não podem é fazê-lo de qualquer maneira e passando por cima da lei, do bom senso e da razoabilidade, caso contrário perdem até a razão. Sobretudo não podem impor à maioria os seus pontos de vista, nem passar à força por cima de contratos de trabalho estabelecidos com outros em nome de oportunidades profissionais a que aspiram.
Se a comunidade cigana, enquanto minoria étnica, der em cortar estradas em protesto contra os senhorios que lhe negam o aluguer das suas casas, ou os portadores de deficiência, enquanto minoria também começarem a bloquear a entrada dos operários nas fábricas por que o mercado de emprego lhes é padrasto, ou os migrantes perturbarem sistematicamente e de forma organizada os serviços do SEF, dirigindo-se agressivamente aos funcionários pelo facto de terem que passar por um calvário para obter documentação, certamente gerarão muitos anticorpos e talvez não resolvam nenhum dos seus problemas. Há outras formas de intervir, de chamar a atenção para as injustiças e de reivindicar direitos sem ser violento, agressivo ou perturbar o trabalho e o espaço dos outros.
Depois veio a novela do pretenso desaparecimento da travesti que terá sido ameaçada de morte, para se vir dizer mais tarde que afinal estava “em segurança”. A vitimização dos infractores é sempre uma estratégia que resulta entre os mais desatentos.
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