Vejam como o “almirante das vacinas” foi alcandorado à condição dum novo D. Sebastião. Alguém lançou a ideia de uma candidatura a Belém. Depois de inicialmente resistir à ideia absurda, ele próprio acabou por se deixar seduzir por ela e já vai revelando tiques de presunção nas suas intervenções públicas. Mas vão lá dizer a essas mentes iluminadas que um militar de carreira em tempo de paz, num estado de direito, numa democracia consolidada e no espaço europeu é uma aberração em regime republicano.
Um dos casos mais recentes da fábrica e da incineradora de heróis é o de Cristiano Ronaldo. Nunca um português tornou mais conhecido em todo o mundo o nome do nosso país. Queira-se ou não, goste-se ou não de futebol, a verdade é que CR7 é uma personalidade global e a que mais seguidores tem nas redes sociais, o que constitui um feito ainda mais relevante pelo facto de não pertencer ao mundo anglo-saxónico, uma vez que, como se sabe, a língua de comunicação universal é o inglês.
Como atleta profissional Cristiano atingiu um estatuto do maior de sempre em Portugal e um dos maiores do mundo na sua modalidade desportiva. Eusébio é de outro tempo e de outro campeonato.
Apenas uns quantos registos que revelam a sua categoria: foi o primeiro futebolista a atingir a marca dos 40 golos numa liga profissional em duas temporadas consecutivas; é o único jogador na história que marcou 60 ou mais golos num ano civil em quatro anos consecutivos: 2011 a 2014, quando ainda ninguém tinha sequer conseguido marcar mais de 50 golos em quatro temporadas consecutivas; foi também o primeiro a marcar mais de 100 golos na UEFA Champions League; foi o primeiro jogador a chegar aos 100 golos nas competições europeias; foi o primeiro e único jogador a ganhar a Bota de Ouro Europeia em 2 ligas diferentes; foi o primeiro jogador a conquistar por cinco vezes a UEFA Champions League; Ronaldo é também quem fez mais jogos e marcou mais golos na competição; é o único jogador a marcar em 11 jogos seguidos na UEFA Champions League; é o primeiro jogador a marcar em cinco Campeonatos do Mundo.
Segundo o Observador, CR7 ainda junta muito mais recordes, entre eles: “melhor marcador da história em jogos oficiais (818 golos); melhor marcador da história das seleções (117 golos); melhor marcador da história por clubes (702 golos); melhor marcador da Liga dos Campeões e do Mundial de Clubes (140 golos e 7 golos); melhor marcador da história do Real Madrid (451 golos); jogador com mais jogos e golos pela Seleção A (191 jogos, 117 golos); o primeiro jogador a conseguir marcar em todos os minutos de jogo.”
Perante isto o que é que uma parte dos seus concidadãos fazem? Em vez de se congratularem com tamanho sucesso do rapaz que nasceu numa família muito pobre numa ilha do Atlântico, filho dum pai alcoólico, e que subiu na vida por esforço e sacrifício próprios, reagem com inveja e maledicência. Sabemos que a cultura popular relativa a um jogador profissional é linear: quando é bem-sucedido é alcandorado à posição de herói, mas quando algo corre mal é desfeito pela crítica. Não importa se Cristiano carregou a selecção às costas anos a fio. Como este mundial e esta época lhe correram mal, há que o diminuir e diabolizar.
Mas CR7 não é apenas uma personalidade global e uma marca. É um ser humano sensível. Embora não ande a alardear os actos de beneficência que tem praticado ao longo da carreira, sempre apoiou causas sociais e humanitárias de forma discreta, por isso sempre foi herói nos relvados e fora deles. Mas isso pouco conta para esta gente, o que é necessário é alguém de quem dizer mal. Não importa se são árbitros, dirigentes, agentes, atletas ou jornalistas.
Há qualquer coisa que leva as pessoas a elevar outros indivíduos, comuns mortais, até quase aos altares e fazer deles heróis com a maior das facilidades, como se comprova rapidamente pela inenarrável lamechice de certos programas de televisão para entreter reformados. Mas existe apenas uma actividade que supera a “fábrica de heróis”, é a “incineradora de heróis”, talvez porque dá vazão aos instintos humanos mais negativos, à indignação, à maledicência, e tantas vezes ao falso testemunho e à calúnia.
Já os verdadeiros políticos sabem tirar partido das alterações de humor e dessa alternância emocional e comportamental das massas, a partir da velha premissa: “Não importa se falam bem ou mal de mim. O importante é que falem!”
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