Esta teoria faz lembrar a de Jean Jaques Rosseau sobre o bom selvagem. Para ele o estado primitivo dos seres humanos era puro e só a civilização e a decorrente vida em sociedade vieram estragar essa ingenuidade inicial com o seu egoísmo, ambição desmedida e falsidade.
A mesma tendência pode verificar-se na conversa habitual dos anciãos, sempre que se reportam às memórias de infância e juventude, para depois defenderem convictamente que no seu tempo “é que era bom”. Mas se formos a ver facilmente se conclui que a vida de então era muito mais dura, curta e penosa. Aliás, de acordo com a lendária sabedoria de Salomão, quem pensa que o passado é que era bom revela falta de sabedoria: “Nunca digas: Por que foram os dias passados melhores do que estes? Porque não provém da sabedoria esta pergunta” (Eclesiastes 7:10).
A quimera das origens também levanta a cabeça no meio religioso. A ideia de que a igreja do primeiro século era pura e que os homens a estragaram com o decorrer do tempo, afastando-a profundamente dessa pureza inicial é ingénua. Quem o defende esquece ou desconhece que o cristianismo inicial era heterodoxo e comportava em si diversas correntes de pensamento, além de inúmeros problemas e disfunções. De tal modo que se tiveram de convocar concílios para resolver disputas teológicas e definição de doutrina e criar credos escritos para fixação da mesma.
Ainda durante o primeiro século, o movimento de Jesus revelava diferentes sensibilidades. Estudiosos como o luterano Oscar Cullmann (1902-1999) acreditavam que a linha joanina, corporizada no quarto evangelho apresenta uma notória afinidade com os helenistas mas também com os essénios de Qumran, e que se caracterizava pela oposição ao culto no templo de Jerusalém, centro de adoração do judaísmo, na base do princípio de que seria o Jesus ressuscitado que substituía o templo.
Depois havia a linha de Pedro, entre outras, muito ligada à tradição da lei de Moisés, mais identificada com os fariseus e saduceus e afastado do universalismo do apóstolo Paulo, com quem de resto se desentendeu. Portanto, o cristianismo primitivo era heterogéneo e a sua teologia incipiente pois ainda não tinha havido tempo e condições para uma reflexão mais aprofundada.
O discurso do regresso às origens é utópico porque não reconhece essa heterogeneidade histórica inicial. Quando se clama por uma nova Reforma alegando um desvio da sã doutrina, a doutrina dos apóstolos e se recomenda um retorno às origens, está a falar-se de quê, em concreto? Compreendo que por vezes a ideia é combater as abordagens liberais, que negam o sobrenatural, e também um certo misticismo que aponta para um sobrenatural falseado ou um sincretismo místico. Mas isso não justifica ignorar a realidade e reescrever a história da fé.
Propor um regresso às Escrituras e à centralidade da cruz de Cristo faz todo o sentido, pelo menos no âmbito da fé protestante, mas há sempre uma condição hermenêutica implícita, ou seja, não basta ler a Bíblia, é necessário também ter consciência da necessidade de a saber compreender, interpretar, contextualizar e aplicar.
Em toda a história do cristianismo se registaram sensibilidades diferentes à volta da expressão e vivência da fé. Daí as disputas teológicas e toda a espécie de cismas, a começar pelo Cisma do Oriente (1054), quando a igreja cristã se dividiu em duas partes, a Grega ou Oriental (conhecida por Ortodoxa) e a Latina ou Católica.
Meio milénio volvido a Reforma protestante (1517) resultou na divisão a própria Europa em dois grandes segmentos religiosos – o católico-romano e o protestante – que se digladiaram durante muito tempo, tendo este último vindo a pulverizar-se desde então em inúmeros grupos e sensibilidades, devido à falta duma liderança universal e duma estrutura vertical ou de pirâmide.
A Igreja será sempre diversa porque é constituída por pessoas que em si mesmo são únicas. Embora a heterogeneidade dos fiéis não possa ser extensível à doutrina, a verdade é que diferentes sensibilidades implicam sempre alguma flexibilidade, a qual dificilmente se compadecerá com a excessiva rigidez dum sistema de crenças e praxis estabelecidas num determinado enquadramento religioso e num contexto histórico definido.
Fazer teologia é contextualizar e aplicar princípios de fé a uma realidade presente e dinâmica. E isso não se articula com qualquer quimera das origens ou ilusão de um modelo original e puro. Como dizia Camões: “Todo o mundo é composto de mudança, tomando sempre novas qualidades”.
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