Vladimir Mikhailovitch Goundiaiev, que escolheu o nome religioso de Cirilo em honra ao santo do séc. IX que expandiu a fé cristã no mundo eslavo, nasceu há 75 anos em Leninegrado, atual São Petersburgo, que foi igualmente o berço de Valdimir Putin.
No dia do 70º aniversário de Putin, o religioso que se tornou patriarca ortodoxo russo em 2009, desfez-se em salamaleques verbais afirmando que Putin estava no poder há vinte e dois anos por vontade divina e com um propósito:“Deus colocou-o a si no poder para que pudesse levar a cabo uma missão com uma importância particular e de uma grande responsabilidade para o destino do país e do povo que vos foi confiado”. E acrescentou: “Que a sua força não falhe e que a ajuda de Deus seja grande”. Cirilo, que em 2012 tinha considerado Putin “um milagre”, pediu aos fiéis que rezem por ele para que preserve capacidade para governar durante muitos e bons anos, colocando assim a igreja ao seu serviço.
A atuação pública da dupla Putin-Cirilo tem-se caracterizado por um populismo religioso atroz. Ambos desejam uma Rússia conservadora a dominar os povos eslavos, em nome da luta contra o que consideram “a decadência moral, o declínio do Ocidente e o advento do satanismo”, daí o forte empenho na guerra de agressão contra a Ucrânia, que por sua vez quer ligar-se à Europa e sair da órbita russa. É uma “guerra santa” contra a Ucrânia e, por extensão, contra o Ocidente.
Seria suposto que um líder religioso cristão com as responsabilidades de Cirilo promovesse um discurso de paz à semelhança do papa Francisco, em consonância com o Evangelho. Não é compreensível que seja um pau mandado do presidente do país ou de qualquer líder político. Como se pode compreender que este homem defenda ataques mortíferos contra civis indefesos em escolas, infantários, maternidades, hospitais, prédios de habitação e centros comerciais? Como se pode entender que esteja a defender a mortandade dos fiéis ortodoxos ucranianos que o têm como seu líder religioso máximo? Como é possível tal miopia e desonestidade?
Há pelo menos duas grandes razões que ajudam a entender a situação. Antes de mais Cirilo era um agente da polícia política soviética, o que não abona nada em seu favor, além de provavelmente lamentar ainda hoje, tal como Putin, o fim do império soviético. A segunda razão é que Putin reverteu a política de liberdade religiosa implementada por Gorbatchev, expulsando e perseguindo inúmeras confissões religiosas e entregando na prática o quase monopólio à Igreja Ortodoxa, fazendo dela a igreja de estado, em troca de um compromisso de apoio cego à sua política geral.
Mas esta cegueira pela violência é já uma marca do patriarca russo. Já tinha abençoado o derramamento de sangue quando a Rússia começou a participar na guerra civil da Síria, ao apoiar a destruição de cidades como Aleppo, em nome duma cruzada contra os “infiéis”. Já na altura se viram padres ortodoxos a abençoar misseis e aviões de guerra prontos a destruir casas e a matar pessoas, tal como agora na Ucrânia.
Por estas e outras é que Cirilo está acusado por ativistas europeus dos direitos humanos da Human Rigths Without Frontiers de “incitar a agressão e a prática de crimes contra a Humanidade, através do apoio declarado à invasão da Ucrânia pela Rússia”, exigindo ainda que este líder ortodoxo seja investigado pelo Tribunal Penal Internacional (TPI). Segundo Janine di Giovanni, no Courrier Internacional, a acusação é de ser “cúmplice de crimes de guerra (Artigo 8 do Estatuto de Roma) e de crimes contra a Humanidade (Artigo 7), cometidos pelas Forças Armadas russas na Ucrânia”.
Em vez de fazer uso do prestígio da sua posição, quase comparável na ortodoxia ao papa no catolicismo romano, para pressionar o fim das hostilidades, Cirilo nem na Páscoa Ortodoxa pediu um cessar-fogo para que as celebrações religiosas ocorressem em paz e segurança, ao contrário do que fez o Conselho Mundial de Igrejas e até António Guterres, secretário-geral da ONU, que clamou por uma “pausa humanitária”.
Cirilo nunca será julgado pelo TPI porque a Rússia não é membro do tribunal, mas o facto de se ter vendido a Putin já o fez perder grande parte do rebanho dos fiéis na Ucrânia e, o que é bem pior, manchou de sangue inocente as suas vestes sacerdotais bem como a dignidade do cargo que ocupa.
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