Celebram-se agora 200 anos sobre a aprovação da Constituição de 1822, que pretendeu pôr um ponto final no absolutismo e ensaiar alguns avanços importantes em direção a um estado de direito e à defesa dos direitos humanos tal como eram entendidos na época. De facto, este foi o mais antigo texto constitucional português e iniciou um novo regime monárquico no país.
O importante documento resultou de dois anos de trabalhos das Cortes Gerais Extraordinárias e Constituintes da Nação Portuguesa (1821-1822), que pode ser considerada a primeira experiência parlamentar em Portugal, na sequência da revolução liberal de 1820, no Porto. O rei D. João VI procedeu ao juramento solene do texto constitucional, mas a rainha Carlota Joaquina recusou fazê-lo assim como o Cardeal-Patriarca de Lisboa, Carlos da Cunha e Menezes. É curioso olhar para o ar enfastiado do homem de clero na pintura de Veloso Salgado, que representa as Cortes Constituintes de 1821 e que está na Sala das Sessões da Assembleia da República.
Inspirada em parte nas leis magnas de Espanha – Constituição de Cádis, 1812) e de França (1791 e 1795) – o texto constitucional acabava com os resquícios do feudalismo, consagrava os direitos individuais do cidadão português, incluindo a liberdade, a igualdade face à lei, a segurança e a propriedade. Definia também as Cortes como sede da soberania nacional de facto e de jure, em razão da legitimidade do voto popular, retirando ainda quaisquer prerrogativas ao clero e à nobreza, que caracterizavam o antigo regime.
Acresce que as Cortes passaram então a assumir predominância sobre os outros poderes, o legislativo, o executivo e o judicial que assim se tornavam independentes, quando anteriormente eram detidos pelo rei, de acordo com o regime absolutista, pelo que o monarca viu os seus poderes claramente reduzidos.
O texto previa a aplicação de penas por delitos de forma proporcional, abolia “a tortura, a confiscação de bens, a infâmia, os açoites, o baraço e pregão, a marca de ferro quente, e todas as mais penas cruéis ou infamantes”, além de não castigar senão apenas a pessoa do delinquente (artº. 11).
A Constituição liberal representou na época um grande avanço progressista, e abriu caminho para o sistema democrático. Segundo Augusto Santos Silva “Ao primeiro constitucionalismo liberal devemos a ideia de soberania nacional, o princípio representativo, a liberdade de expressão e a liberdade de imprensa.” Mas ainda assim aos olhos de hoje sabe a pouco. Desde logo porque ficavam excluídos da capacidade de voto as mulheres, os analfabetos, os menores de 25 anos, os frades e os criados de servir, entre muitos outros, ou seja, era uma espécie de democracia mitigada ou elitista.
Por outro lado a monarquia constitucional mantinha uma situação de falta de liberdade religiosa, já que estipulava que “a Religião da Nação Portuguesa é a Católica Apostólica Romana”, permitindo contudo aos estrangeiros o exercício particular dos seus respectivos cultos (artº. 25). Como é óbvio, o clero não poderia aceitar outra coisa tendo em conta a notória perda de privilégios que sofreu neste novo enquadramento legal.
Mas o Portugal Velho – no dizer de Alexandre Herculano e Oliveira Martins – ainda havia de espernear muito antes de aceitar a sua morte. A verdade é que os avanços do quadro constitucional liberal provocaram uma reacção dos sectores mais conservadores da sociedade que tudo fizeram para o destruir. Apesar de esta lei magna prever que só poderia ser revista passados quatro anos da sua publicação (artº. 28), e de estipular os termos da revisão, o facto é que se manteve em vigência apenas por dois curtos períodos: 23 de Setembro de 1822 a 3 de Junho de 1823, ocasião em que o rei a suspendeu, devido à Vilafrancada, prometendo substituí-la por outra, o que não cumpriu, e de 10 de Setembro de 1836 (Revolução de Setembro) a 20 de Março de 1838, quando foi substituída por novo texto constitucional.
A insurreição miguelista de 27 de Maio de 1823, a partir de Vila Franca, tentou a restauração do absolutismo e desafiava na sua proclamação: “eclesiásticos e cidadãos de todas as classes, vinde auxiliar a causa da religião, da realeza e de vós todos.” D. Miguel apelou, portanto, a um clero ressentido pela perda de privilégios, e associou o liberalismo a um ataque à religião oficial.
O mesmo sucede ainda hoje com as forças políticas reaccionárias, que dificilmente entendem a importância dos direitos humanos, da dignidade intrínseca da pessoa, da liberdade de pensamento e de religião, e da democracia, usando e abusando das crenças e sentimentos religiosos das populações a fim de marginalizar cidadãos nacionais e estrangeiros. Se a extrema-esquerda persegue os religiosos, como sucede hoje na Nicarágua, a extrema-direita persegue os outros.
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