“O coração tem razões que a própria razão desconhece.”
Blaise Pascal
Somos um povo muito especial. A Idade Média já lá vai, mas a devoção pelas relíquias foi agora transformado em culto profano num acontecimento que sugere um saudosismo envergonhado pelo sistema monárquico. O coração de D. Pedro foi dar uma voltinha ao Brasil para espanto daqueles que, na outra margem do Atlântico, se interrogam sobre o sentido que faz comemorar uma data de independência com a “visita” do coração de alguém que representa a nação da qual o país se separou. A escritora Eliana Alves Cruz diz que com o envio do coração de D. Pedro, “fica parecendo que a independência foi uma benesse do Estado português da época”.
Para lá de todas as intenções de aproveitamento político por parte do governo brasileiro em plena campanha eleitoral (o que só por si parece mais compaginável com um país subdesenvolvido do que com uma democracia madura), ainda temos um piquinho de revivalismo monárquico à boleia do acontecimento.
Se Bolsonaro não quisesse fazer aproveitamento político teria recebido a relíquia no palácio do congresso, junto com o presidente do mesmo e os líderes parlamentares e não na sede do governo, já que a independência não é obra de nenhum governo mas sim de todo o povo brasileiro, que por sua vez não é representado pelo governo do momento, mas pelos parlamentares da nação. E já agora, o que fazia lá a mulher dele?
E se Bolsonaro não quisesse mesmo fazer aproveitamento político não teria recebido a relíquia com a frase “Deus, pátria, família!”, que invoca evidentes reminiscências salazaristas em Portugal, integralistas no Brasil e fascistas em geral. Essa frase transformou definitivamente o momento num acto de propaganda político-eleitoral e de afirmação da extrema-direita e não de homenagem a todo o povo brasileiro como seria suposto, ao contrário do que o presidente da câmara municipal do Porto tinha afirmado.
Não porque exista algo errado com Deus, a pátria ou a família, mas porque tais conceitos na boca e na ideologia de quem profere esta frase assumem uma carga excludente relativamente aos de religião diferente, de etnia diferente ou as minorias de qualquer tipo, o que se torna aberrante no mundo em que hoje vivemos. Porque esse deus invocado é só de alguns sectores da sociedade e exclui os outros; porque a pátria que aí se refere está ferida dum nacionalismo doentio que deixa de fora índios e quilombolas entre muitos outros grupos; e porque a família de que se fala não passa duma falácia na boca dum homem que já vai no terceiro casamento e de quem defende a criminalização de crianças grávidas devido a violação ou abuso sexual.
Um país virado para o futuro não invoca lemas políticos de há quase cem anos nem gasta tempo e rios de dinheiro com relíquias profanas de recorte macabro. Como escreveu na VISÃO Helena Telino Neves: “Rui Moreira é tão bom em prestar homenagens como aquela pessoa que fez o busto do Cristiano Ronaldo no aeroporto da Madeira.” Mas está visto que a questão aqui não é a homenagem em si mesma mas a vaidade pessoal do homenageador.
Qualquer dia temos um circuito turístico-político de órgãos conservados em formol. E já agora, porque não os rins dum político contorcionista ou o estômago dum governante com especial capacidade para engolir sapos vivos? O historiador brasileiro Luiz Antônio Simas ironizou nas redes sociais: “já que o coração de D. Pedro chegou – e considerando que a invasão napoleónica trouxe a corte portuguesa para cá [Brasil] e marcou o início do processo de independência – sugiro que tragam também para as celebrações o pénis de Napoleão Bonaparte…”
O profeta Ezequiel falava à nação durante o exílio na Babilónia: “E virão ali, e tirarão dela todas as suas coisas detestáveis e todas as suas abominações. E lhes darei um só coração, e um espírito novo porei dentro deles; e tirarei da sua carne o coração de pedra, e lhes darei um coração de carne” (Ezequiel 11:18,19). Estou em crer que o coração que deixou de bater há séculos, tendo sido entretanto mergulhado em formol, será uma boa metáfora do coração de pedra de quem o recebeu no Palácio do Planalto.
Resta a esperança de que órgão de D. Pedro tenha regressado ao Porto em melhor estado do que foi, como sucedia há séculos com o vinho torna-viagem que voltava a Portugal nas caravelas, por não ter sido vendido no destino, e surpreendentemente com melhor qualidade do que à partida.
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