Um dos maiores equívocos da prática religiosa em geral é a tentação de alguns líderes quererem impor a ética particular da sua confissão a todos os concidadãos, mesmo que professem fé diferente ou nenhuma fé religiosa. Mas isto não é exclusivo deste sector uma vez que os estados por vezes caem em tentação idêntica, partindo embora de pressupostos diversos, ainda assim contaminados muitas vezes pela tradição religiosa vigente, em especial quando existe uma ligação identitária mais ou menos firme entre estado e a religião única ou predominante no país.
Em tempos viam-se polícias a patrulhar as praias de régua na mão, para medir o tamanho da indumentária de banho das mulheres e a passar multas ou a mandá-las vestir ou abandonar a zona balnear. É assim que surgem inúmeros casos de conflitualidade em torno da denominada moral sexual mas não só.
Este impulso vem em linha com práticas coloniais seculares, quando os navegadores levavam a cruz e a espada. Submetiam os povos indígenas ao seu poder de fogo e passavam a impor o deus europeu e a respectiva simbólica religiosa enquanto procuravam erradicar os cultos originários dos territórios conquistados. De seguida impunham um novo estilo de vida, mudando costumes ancestrais, conceitos e mundovisão.
A ideia de que a Europa era o centro do mundo, antes do surgimento dos Estados Unidos, dava força a esta pretensa superioridade europeia que olhava para os povos dos novos mundos como inferiores em tudo e também na revelação de Deus e na ligação à transcendência. Em nome da civilização dos povos colonizados promoveram-se então os maiores crimes.
Ainda agora o papa Francisco se deslocou ao Canadá para pedir perdão pelos resquícios dessa mentalidade que originaram inúmeros atropelos perpetrados no âmbito do ensino católico, pois durante mais de um século, perto de 150 mil crianças indígenas foram obrigadas a abandonar as famílias, raízes, cultura e língua, para frequentarem colégios estatais, muitos deles geridos pela igreja católica.
É essa mesma mentalidade que leva hoje alguns religiosos a quererem condicionar as leis e a vida quotidiana dos seus concidadãos segundo doutrina própria, mesmo sabendo que os outros não a seguem. Nesta matéria não existirá muita diferença com os radicais muçulmanos, uma vez que fazem exactamente isso com recurso à lei islâmica, particularmente a sharia nos países árabes ou por instrumentalidade da temível polícia religiosa no Irão. Obrigam qualquer um a obedecer aos preceitos religiosos tornados lei, sob pena de prisão ou morte.
Na sua célebre oração sacerdotal Jesus explicou aos discípulos que eles não eram do mundo embora estivessem colocados transitoriamente nele: “Dei-lhes a tua palavra, e o mundo os odiou, porque não são do mundo, assim como eu não sou do mundo. Não peço que os tires do mundo, mas que os livres do mal. Não são do mundo, como eu do mundo não sou” (João 17:14-16). Mas alguns cristãos pensam o contrário, que não só são do mundo como querem mandar nele, formatando-o segundo as suas regras e impondo-lhe a sua vontade e conceitos.
O mais grave é quando tal atitude passa por exercer opressão sem misericórdia sobre as minorias ou aqueles que pensam de modo diferente, de modo que, ou se “convertem” ou são taxados como diabólicos e banidos ou mesmo executados. Basta lembrar a caça às bruxas promovida pela igreja medieval, as cruzadas e a Inquisição, mas também os desmandos de muitas outras religiões e filosofias, já que todas elas caíram no mesmo erro ao longo da história.
Se a lei não me obriga a viver contra a minha ética religiosa por que razão quero eu impor à força aos outros, a quem não tem essa mesma ética ou tradição religiosa, que vivam e se comportem como se as tivessem? A minha liberdade torna-se assim pretexto para negar aos outros a sua própria liberdade.
Mas é claro que os direitos humanos universais e a dignidade da pessoa deveriam estar acima de todas as éticas religiosas, sejam elas quais forem.
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