O papa Francisco sabe que a desclericalização da igreja católica é uma necessidade premente perante os desabafos do povo crente, que vem elevando paulatinamente a voz contra uma instituição que revela muito pouca capacidade para acompanhar a contemporaneidade.
A nova Constituição do Vaticano, “Praedicate evangelium” (pregai o Evangelho), foi promulgada no Dia de Pentecostes e lançou as novas palavras de ordem da igreja católica: “Evangelizar e Renovar”. Mas o essencial é uma reforma que se antevê profunda na cúria romana. Este documento revoga e substitui o normativo anterior procedente do documento de 1988, “Pastor Bonus” (Bom Pastor), do tempo de João Paulo II e procura virar a instituição para fora descentrando-a de si mesma.
Logo que acabou de ser eleito papa, Francisco disse algo do género: “Escolheram-me, agora aguentem!” Depois de conhecer o Vaticano por dentro passou a chamar as coisas pelos nomes perante a hierarquia, ao apontar: “Alzheimer espiritual”, “terrorismo de mexericos”, “exibicionismo”, “burocracia”, “carreirismo” e outros pecados. Limitou mandatos, reduziu organismos de cúpula, abriu a porta a leigos e mulheres e procura uma igreja sinodal, insistindo no combate ao clericalismo e ao poder vaticanista.
Medidas como a limitação de altos cargos a mandatos de cinco anos, renováveis só uma vez, trazem uma brisa de abertura nunca vista em Roma. Este quadro permitirá renovar mais de dois terços dos cargos de topo nas actuais Congregações, já que seis dos nove prefeitos contam já com idade superior a setenta e cinco anos, incluindo Robert Sarah, o cardeal guineense que dirige a Congregação para o Culto Divino e Disciplina dos Sacramentos, um dos opositores da renovação.
Todavia Francisco tem dificuldades complicadas a vencer. A primeira delas é imprimir uma mudança de mentalidades. O especto religioso é extremamente conservador por natureza e avesso a mudanças. Abrir altos cargos a mulheres na cúria – e talvez mesmo o sacerdócio – assim como permitir o casamento dos padres, é uma autêntica revolução nos usos e costumes do catolicismo. Como proceder com sucesso a uma mudança cultural nos fiéis?
Mas há um desafio porventura maior do que este: vencer as forças internas dos hierarcas ultramontanos, os chamados “rigoristas”. Segundo o Religión Digital: “Os inimigos de Francisco, tanto dentro como fora da Igreja, estão unidos por uma característica comum: o rigorismo. Eles não sabem conjugar o verbo misericórdia. Eles até o abominam e, portanto, o Evangelho de Cristo. (…) Dois blocos convergem. Por um lado, os inimigos internos da linha teológica de Ratzinger sobre os chamados ‘princípios inegociáveis’, querem sabotar o reformismo do papa argentino. Do outro, os inimigos externos. Do Vox e sua galáxia, aos setores mais conservadores do PP, passando por seus terminais mediáticos”.
Como se não bastasse resta ainda um combate eficaz pela desclericalização da igreja católica, contra a hierarquização e, porque não, acabar mesmo com esse resquício do poder medieval chamado cardinalato ou a designação de poder atribuída aos bispos (“Dom”, que vem de “dominus”), título atribuído aos nobres que eram donos de escravos na Roma Antiga.
Francisco já deu um sinal de mudança ao colocar a Evangelização como primeiro Dicastério presidido por ele mesmo, e no segundo está incluída a Comissão de Protecção de Menores com a relevância necessária para enfrentar os abusos sexuais por parte do clero. Passados nove anos de pontificado e de trabalho da equipa nomeada pelo papa com vista à reforma da cúria, Francisco possui finalmente os instrumentos legais para seguir em frente. Mas a batalha ainda será longa, pois o povo católico e o mundo estavam habituados a ouvir o sumo pontífice falar dos males da sociedade mas não dos cancros que entretanto andavam a corroer a sua igreja há muito.
Nunca um chefe da igreja católica foi tão directo e incisivo a falar à sociedade (“esta economia mata!”), e muito menos a dar sinais à cúria romana da urgência de introduzir mudanças profundas no poder vaticano e na prática pastoral. Nomear mulheres para funções de tomada de decisão, tolerância zero à pederastia ou a possibilidade de celibato opcional levaram os seus inimigos internos a classificarem-no como herege, usurpador e anticristo, defendendo alguns que o verdadeiro papa é Bento XVI.
Fazem lembrar a desesperada e patética narrativa de Trump quando perdeu as eleições presidenciais para Biden…
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