Creio que aquilo a que se costuma chamar a arte do desenrascanço à portuguesa não é outra coisa senão uma conjugação de duas qualidades notáveis: o espírito inventivo e a capacidade de adaptação. De facto, a história de Portugal confirma como sempre tivemos uma capacidade especial para nos adaptarmos a novos costumes, línguas, tradições e paisagens.
Desde o tempo da Expansão, época em que os Portugueses deram início ao primeiro fenómeno de globalização, que fomos competentes para interagir com outros povos, religiões e culturas. Fizemos comércio, levámos a fé e inventámos o mestiço. Ao contrário de outros europeus, muitos colonos lusos viviam mesmo entre os autóctones e interagiam pacificamente com eles, embora noutros casos tenhamos praticado os mesmos crimes de outros europeus, que marcaram tragicamente o poder colonial. Ainda hoje os trabalhadores portugueses adaptam-se pronta e facilmente às contingências da emigração que os levou a dispersar pelos cinco continentes.
Quanto ao espírito inventivo, basta pensarmos que desde a caravela e o astrolábio náutico até ao sistema da Via Verde, passando pelo Multibanco, a bola de vento para microfones, o elevador para cadeiras de rodas ou os cartões pré-pagos, sempre marcámos pontos no campo das ideias criativas em diversos domínios.
Ainda há pouco demos ao mundo a invenção das boias motorizadas U-Safe, invenção tecnológica cem por cento portuguesa, um sistema de salvamento no mar com controlo remoto, que pode funcionar mesmo quando as águas estão revoltas e não coloca em risco a vida dos salvadores. Esta solução já está a ser adoptada por marinhas e guardas costeiras de todo o mundo que estão a comprar estes equipamentos à empresa de capitais nacionais localizada em Torres Vedras.
O caso das U-Safe correu bem porque contou com o apoio de fundos comunitários do Portugal 2020, da banca, do Estado (homologação por parte do Instituto de Socorros a Náufragos; parceria com o Ministério da Defesa; candidatura ao IAPMEI para a construção da fábrica, que ficou pronta em metade do tempo previsto) e a manifestação de interesse por parte da Volvo Ocean Race. A empresa sustenta até a ambição de inaugurar novas fábricas na Austrália e Estados Unidos.
Mas não se pense que as invenções de nacionais surgem apenas pela mão dos velhos inventores do tipo professor Pardal. Os jovens são igualmente muito criativos. É o caso de uma aluna de mestrado do ISEG que em 2021 desenvolveu na sua dissertação uma metodologia que ajuda a fazer do futuro algo menos incerto. Carolina Vasconcelos aperfeiçoou assim uma das mais famosas ferramentas de previsão, e essa inovação valeu-lhe o prémio Young Research Award do Research in Economics and Mathematics/ISEG – Economia.
O que a actual doutoranda na Universidade Nova (Information Management School) fez foi apresentar um rasgo de inovação para inúmeros sectores da sociedade, ao desenvolver uma nova metodologia estatística, a partir das chamadas Cadeias de Markov, que permite, como disse o DN, “prever a evolução de uma pandemia, projetar retornos de investimentos em Bolsa ou antever comportamentos de consumidores. Ou seja, em todas as situações em que é importante tomarmos decisões baseadas em algum nível de certeza sobre o que poderá ocorrer, como simplesmente uma previsão meteorológica que nos ajuda a escolher a roupa para o dia seguinte.”
Portanto, não nos falta capacidade de adaptação nem espírito inventivo, o que falta é um clima de estabilidade que promova o espírito inovador português e condições para o empreendedorismo jovem, de modo a potenciar a nossa geração mais bem preparada de sempre e que pode fazer a diferença na economia nacional. Mais vale isso do que canalizar o grosso dos apoios oficiais para as clientelas de quem está no poder em cada momento, à esquerda e à direita, por vezes para empresas condenadas que fecham as portas logo a seguir.
A arte portuguesa do desenrascanço sempre foi menosprezada e vista como uma bizarria latina por contraste com a organização e método dos europeus do Norte, mas contribuiu para sermos o império que fomos no passado e o que somos hoje, um dos países mais estáveis e antigos da Europa.
Com a presente abertura ao continente e ao mundo, se conseguirmos evoluir para a arte do bem-fazer, ninguém nos agarra.
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