José Antonio Pagola é um teólogo católico e um pensador notável que procura contextualizar a fé e chega penosamente a uma conclusão embaraçosa: “Depois de vinte séculos de cristianismo, é difícil ouvir as instruções de Jesus aos seus sem se sentir envergonhado”.
Fá-lo com base em dois momentos em que o mestre da Galileia orienta os seus discípulos quanto à forma de cumprirem a sua missão no mundo.
Por um lado recorre à sua vocação de anunciadores da Paz: “E, quando entrardes nalguma casa, saudai-a. E, se a casa for digna, desça sobre ela a vossa paz; mas, se não for digna, torne para vós a vossa paz. E, se ninguém vos receber, nem escutar as vossas palavras, saindo daquela casa ou cidade, sacudi o pó dos vossos pés” (Mateus 10:12-14). Diz Pagola que “a paz é o primeiro sinal do reino de Deus.”
Mas o que vemos hoje (e vimos ao longo da História) por parte de vários setores do cristianismo é outra coisa. A guerra – veja-se o caso recente de Cirilo, o patriarca ortodoxo de Moscovo – ou as guerras religiosas e culturais promovidas por diversos setores cristãos nos Estados Unidos ou no Brasil, por exemplo, desde o pontapé desferido na imagem da Senhora Aparecida por um bispo neopentecostal, ao apedrejamento de fiéis do candomblé, até ao assalto ao Capitólio a fim de subverter a ordem democrática e constitucional, temos visto cristãos e suas lideranças a dar consecutivos tiros nos pés, em frontal oposição à ordem de Jesus.
Basta ouvir o discurso agressivo de Malafaias e outros líderes religiosos da mesma estirpe para ficarmos arrepiados com a violência que pretendem provocar na massa dos fiéis, tanto pelo tom como pelos qualificativos utilizados contra os que deles discordam. De facto, se os cristãos não forem fatores de paz na comunidade estarão a passar ao lado da essência da sua vocação.
Os seguidores de Jesus de Nazaré são assim enviados às povoações da Galileia como “cordeiros no meio de lobos” (Lucas 10:3). Mas hoje vemos demasiados lobos vestidos de cordeiros, embora alguns nem sequer disfarcem a sua natureza. Podemos conhecê-los de dois modos: pelo que falam: “Raça de víboras, como podeis vós dizer boas coisas, sendo maus? Pois do que há em abundância no coração, disso fala a boca” (Mateus 12:34). Mas também pelo que fazem: “Por seus frutos os conhecereis. Porventura colhem-se uvas dos espinheiros, ou figos dos abrolhos? Assim, toda a árvore boa produz bons frutos, e toda a árvore má produz frutos maus. Não pode a árvore boa dar maus frutos; nem a árvore má dar frutos bons” (Mateus 7:16-18).
O segundo aspeto que o teólogo invoca está inscrito no mesmo texto do Novo Testamento: “E, indo, pregai, dizendo: É chegado o reino dos céus. Curai os enfermos, limpai os leprosos, ressuscitai os mortos, expulsai os demónios; de graça recebestes, de graça dai. Não possuais ouro, nem prata, nem cobre, em vossos cintos, nem alforges para o caminho, nem duas túnicas, nem alparcas, nem bordões; porque digno é o operário do seu alimento” (Mateus 10:7-10). Portanto, uma vida de simplicidade e desprendimento para que se concentrem objetivamente na sua função.
A ideia é manter a identidade de peregrinos na vida sem apego às coisas materiais e na dependência divina. Mas trata-se de uma atitude mental e não necessariamente de um voto de pobreza, muito embora se descortine aqui uma intenção de não se alhearem nem distanciarem dos pobres, que sempre teremos connosco independentemente do regime político-económico vigente.
Muita da indisposição da sociedade contra a Igreja deve-se ao facto de ela agir frequentemente ao arrepio dos ensinamentos do Mestre Jesus. A forma de afirmar a fé não é utilizando as armas e o poder do mundo: “Não por força nem por violência, mas sim pelo meu Espírito, diz o Senhor dos Exércitos” (Zacarias 4:6b). A identidade cristã terá que ser afirmada sem agressividade, ressentimento, insultos ou ataques, porque essas armas são “carnais” e opostas ao espírito de Cristo. A Igreja deve ser composta por ovelhas e não por lobos, mesmo numa sociedade conflitual.
Pagola considera que é hoje um grande desafio saber como agir como ovelhas na sociedade chamada do bem-estar, de modo a expressar o espírito de Cristo, pois isso não se reconhece pelos paramentos, ou proclamações, mas sim por um testemunho de vida alinhado com o Mestre Jesus.
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