O tipo de afirmações como “Sê igual a ti próprio”, “Segue o teu coração” ou “Segue o que sentes” são aparentemente reforços positivos, mas no fundo constituem um certo perigo para a harmonia interior dos indivíduos e para a sua inserção positiva na sociedade.
Como os sentimentos nos atraiçoam tantas vezes basta eu seguir um determinado sentimento numa certa hora e posso estragar tudo à minha volta, hipotecar as minhas relações e colocar em risco o futuro. Por exemplo, se me der vontade de partir a cara do meu chefe e o fizer, em obediência ao princípio de seguir o que sinto, está o caldo entornado.
Por outro lado, seguir o coração pode funcionar bem ou mal. Depende das situações. Nos últimos minutos de um jogo de futebol, em especial nas finais das competições importantes, dizem os comentadores desportivos que a equipa que está em vias de perder o troféu começa a jogar mais com o coração do que com a cabeça. Isto é, os atletas perdem discernimento, deixam de ser objetivos e esquecem a tática prevista no desespero de marcar um golo que lhe reavive a esperança. Seguir o coração pode ser uma frase romântica mas perder a cabeça em simultâneo não augura nada de bom.
Resta o chavão mais repetido e porventura mais perigoso de todos, que é: “Sê tu mesmo!” Compreende-se que esta afirmação se relaciona com a autenticidade, o que é uma atitude positiva, ou mesmo com a capacidade de elevar a auto-estima a ponto de não querer fingir ser algo que não se é por pressão da opinião pública, o que soaria a falso. Aceitar-se e gostar de si continua a ser um défice significativo do ser humano.
O problema é quando a pessoa tem problemas de caráter. Quando é vingativo, rude, autoritário, invejoso, inseguro, hipersensível ou detestável, dizer para ser ele mesmo é dar-lhe um reforço positivo em dimensões do seu caráter que devem ser trabalhadas, controladas e não reforçadas. Por outro lado esse chavão motivacional pode ser um pretexto para não estimular a pessoa a trabalhar o seu caráter, de modo a que a auto-aceitação justifique o mau comportamento. Aí, a frase torna-se demasiado simplista, estática e serve como desculpa para o comportamento censurável.
De facto nós podemos ser muito mais do que isso. Na verdade, o “Sê tu mesmo!” podia ser substituído por “Sê o melhor de ti mesmo!” ou “ Sê o melhor que podes ser!”, isto é, um estímulo para que o indivíduo se considere em processo de construção, empenhado no seu crescimento contínuo, apesar de todas as imperfeições, disponível para amadurecer, reinventando-se continuamente como uma versão sempre melhorada de si mesmo.
Quem tem fé pode mesmo considerar o exemplo de Jesus Cristo que nasceu sem pecado, segundo as Escrituras, mas ainda assim ainda estava disponível para o seu crescimento pessoal e relacional: “E crescia Jesus em sabedoria, e em estatura, e em graça para com Deus e os homens” (Lucas 2:52). Quanto mais não precisamos nós desse movimento construtivo. Aliás, só há duas opções. Crescer ou morrer. Quem já desistiu de crescer já desistiu da vida e está em movimento descendente em direcção à irrelevância e à mediocridade.
O apóstolo Paulo chegou a expressar de forma chocantemente sincera a sua frustração consigo próprio: “Porque não faço o bem que quero, mas o mal que não quero esse faço. Ora, se eu faço o que não quero, já o não faço eu, mas o pecado que habita em mim” (Romanos 7:19,20). Uma frase que expressa bem a teologia paulina da luta entre a carne (ou o homem carnal sujeito aos impulsos pecaminosos) e o espírito (o homem espiritual, guiado pelo Espírito Santo) que se verifica permanentemente no interior de cada cristão.
De facto a autenticidade é saudável até do ponto de vista psicológico e emocional. Fingir algo que não se é convive com a patologia mental. Mas isso não chega. É necessário e conveniente que fatores como mudança, amadurecimento, desenvolvimento e amor-próprio estejam presentes no processo da vida humana.
Não basta aceitar-me ou gostar de mim tal como sou, ou apenas lamentar o que tenho consciência de não ser. É mais importante gostar daquilo em que me posso tornar e comprometer-me ativa e empenhadamente no processo de mudança.
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