Quando frequentava a escola primária em Lisboa, algures entre 1961 e 1963, eu era um dos dois melhores alunos da turma. Um dia a professora Judite entendeu delegar-nos – a mim e a um colega – que vigiássemos um trabalho individual que toda a turma estava a realizar na aula. Perante as óbvias dificuldades de um dos colegas menos dotados dei-lhe discretamente uma pequena ajuda. Mas o outro “fiscal”, em vez de se limitar a tratar da sua responsabilidade e de se meter na sua vida, apercebeu-se e foi logo fazer queixa à professora. Já não me lembro como a coisa acabou mas fiquei furibundo com ele.
Hoje, olhando para trás, acho que ficaria furioso à mesma mas compreenderia melhor o quadro. Quem sabe se o pai dele não seria um “bufo” da PIDE? É que uma parte dos portugueses de então eram informadores da polícia política e muitos outros não eram mas gostariam de ter sido. É o que nos revela a pesquisa que Irene Pimentel desenvolveu para o seu novo livro sobre aquela organização repressiva.
A Comissão de Extinção da PIDE/DGS e Legião Portuguesa em 1974 calculou então que os informadores seriam uns 20 mil, mas um especialista citado por Artur Cassiano no DN, que terá consultado documentos em Caxias, estima que um em cada 4 mil portugueses “teria recebido (…) pagamentos da PIDE/DGS por informações prestadas”, embora José Freire Antunes multiplique esse número por dez. Ou seja, para o historiador um em cada 400 portugueses seria “bufo”.
Acresce que Irene Pimental, a historiadora distinguida com o prémio Pessoa em 2007, adianta que a cultura de denúncia na sociedade portuguesa era muito forte pois os cidadãos que se ofereciam ao Ministério do Interior, ou à PIDE eram três vezes mais do que os “bufos encartados”, sendo que alguns deles escreviam directamente a Salazar a oferecer-se, desde operários e assalariados rurais a profissionais liberais, militares, padres e gente de todas as faixas etárias. Ninguém sabe quantos eram nem quem, pois no dia da revolução dos cravos o director da PIDE/DGS mandou destruir os ficheiros com a identificação.
Voltemos à minha infância no bairro do Alto do Pina, em Lisboa. Devia eu ter uns sete ou oito anos veio um PSP perguntar-me, muito simpático, quando eu ia a caminho da mercearia para fazer um recado à minha avó:
– Ó menino, sabes quem partiu o vidro daquele candeeiro?
Eu, nervoso porque tinha medo de polícias apesar de ter um tio naquela força de segurança, disse que não fazia ideia e a coisa ficou por aí. Mas ainda hoje recordo o episódio. Lá estava a cultura da denúncia, sempre presente.
É certo que alguns “bufos” delatavam por dinheiro, conseguindo assim um bom pecúlio mensal (que hoje variaria entre 200 e 10 mil euros), mas outros faziam-no por maldade, ódios de estimação, devoção ao regime, inveja e outros motivos inconfessáveis. Alguns denunciavam com receio que outros os denunciassem a eles, tal e qual como nos tempos áureos da Inquisição.
A verdade é que a sociedade portuguesa estava prisioneira do medo devido a um regime autocrático e policial, e isso levou imensa gente de todas as classes sociais a adaptar-se à situação entrando assim no jogo do mais forte, tornando-se servil e denunciando aqueles que revelavam maior coragem em fazer a diferença. Portanto, não nos podemos admirar com a docilidade do povo alemão perante a loucura hitleriana, salvaguardadas honrosas excepções, ou dos espanhóis durante os crimes do regime franquista.
É que se há um preço a pagar para alcançar a liberdade, também existe um preço para a manter, que passa pela responsabilidade pessoal, pela coragem de ter opinião e de a expressar, o que para muitos é desconfortável além de dar trabalho.
Depois ainda há os que querem estar sempre do lado da maioria. É bom não esquecer que o último chefe do Estado Novo, Marcelo Caetano, foi saudado entusiasticamente por uma multidão de milhares de pessoas no antigo estádio José Alvalade, no intervalo dum jogo de futebol, poucos dias antes da revolução dos cravos. Pouco depois as mesmas pessoas estavam nas ruas a clamar “Abaixo o fascismo!” e uma semana depois a celebrar alegremente o primeiro 1º de Maio em liberdade.
Ninguém sabe quantos “bufos” deram em fanáticos da esquerda e extrema-esquerda. Eu conheci um que era membro da Legião Portuguesa, uma espécie de guarda pretoriana do regime salazarista-marcelista e que depois de Abril virou um sindicalista radical de esquerda…
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