A ideia foi plasmada na história do cristianismo há muitos séculos. Ainda na segunda metade do I século houve quem se abstivesse de casar e constituir família por aguardar a segunda vinda de Cristo.
De facto, esta ideia peregrina chocava com as escrituras hebraicas que exaltam a excelência do casamento e da família, considerando os filhos como bênção divina, na óptica do quantos mais fossem melhor: “Eis que os filhos são herança do Senhor, e o fruto do ventre o seu galardão. Como flechas na mão de um homem poderoso, assim são os filhos da mocidade. Bem-aventurado o homem que enche deles a sua aljava; não serão confundidos, mas falarão com os seus inimigos à porta” (Salmos 127:3-5). Ter uns quantos filhos varões era um certificado de segurança mas também de apoio na velhice, em sociedades sem qualquer apoio social institucional.
Outros abstinham-se de trabalhar em nome da mesma expectativa – a Parousia – a ponto de o apóstolo Paulo ter que os advertir duramente: “Porque, quando ainda estávamos convosco, vos mandamos isto, que, se alguém não quiser trabalhar, não coma também” (2 Tessalonicenses 3:10).
Nestes dois mil anos de fé cristã, muitos afastaram-se da comunidade humana tornando-se eremitas e ascetas, passando assim ao lado da vocação de todo o discípulo de Cristo, ser luz no mundo, isto é, fazê-lo brilhar através da sua vida no meio da humanidade.
Esta tensão entre a realidade duma sociedade corrompida e uma Igreja em idêntica condição, por um lado, e o desejo de consagração a Deus, por outro, produziu diversos tipos de reações incluindo uma postura escapista. Isso foi potenciado pelas influências religiosas do pietismo, do puritanismo e dos “quackers” entre outros, que acabaram por querer anular qualquer espécie de prazer nesta vida, considerando-a como um mero corredor para a eternidade.
Nesse sentido foi-se criando a ideia de que há um espaço sagrado e um profano.
Anselmo Borges alerta-nos convenientemente contra tal equívoco: “Aos poucos, a Bíblia dá indicações de que é necessário acabar com esta separação dicotómica do sagrado e do profano. Diz-se expressamente que com a morte de Cristo o véu do Templo se rasgou de cima a baixo. Se Deus criou exclusivamente por amor, toda a realidade é ao mesmo tempo sagrada e profana: tudo é profano, pois pertence à autonomia, e simultaneamente tudo é sagrado, pois Deus é sempre presença infinita a todas as criaturas.”
Ou como diz Ed René Kivitz: “O Deus confinado aos templos, monopolizado pelos beatos, dissecado pelos teo-eruditos profissionais, é, definitivamente, pequeno demais, é, na verdade, um ídolo.” Deus não se confina aos locais considerados sagrados como os templos, até porque, de acordo com a teologia paulina, o templo espiritual é o conjunto dos fiéis e não os edifícios, por isso é que os crentes são chamados “pedras vivas”: “Vós também, como pedras vivas, sois edificados casa espiritual e sacerdócio santo, para oferecer sacrifícios espirituais agradáveis a Deus por Jesus Cristo” (I Pedro 2:5).
Borges cita mesmo o nosso amigo teólogo Andrés Torres Queiruga quando diz que “também no casamento, os que se amam tanto se amam na cama como quando trabalham para a família ou estão a comer, a descansar ou a passear.” Afinal, Deus está presente em todo o lado onde quer que esteja um ser humano, independentemente da sua condição, perfil moral ou crença religiosa. Também está na Natureza, sua Criação: “Os céus declaram a glória de Deus e o firmamento anuncia a obra das suas mãos” (Salmos 19:1).
Paul Tillich teorizou a teologia da cultura e defendeu que “a religião é a substância da cultura, e a cultura, a forma da religião”, já que o exclusivismo religioso sempre trouxe marcas indesejáveis para a humanidade e a tendência para os fundamentalismos, o fanatismo e as verdades únicas.
É que o erro de viver confinado no corredor tem consequências. Provoca alienação, perda de perspetiva e de sensibilidade para com o mundo em que se vive. Mas também anula o sentido de testemunho (marturia) e provoca frustração recorrente. E assim a cultura escapista vai hipotecando o presente em nome do futuro, esquecendo que o Cristo por quem se espera, afinal, é peregrino connosco neste mundo. Em espírito e em verdade.
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.