O mundo anda distraído mas a situação no norte de Moçambique é complicada. O jihadismo salafista tem provocado o terror nas populações que fogem aos magotes para sul, depois de terem presenciado as maiores barbaridades como decapitações, violação de mulheres, rapto de crianças, destruição de colheitas e fogo posto em casas de habitação e edifícios públicos. As autoridades do país reagiram tarde à crise e com pouco músculo tendo pedido ajuda tardiamente.
Quem se tem comportado melhor no meio de tanta desgraça foram os líderes religiosos. O então bispo católico de Pemba denunciou os ataques terroristas desde o início e acabou estranhamente transferido. Neste momento os líderes religiosos parece terem dado as mãos numa atitude de unidade entre eles, de solidariedade para com as populações que servem e de testemunho perante o país e o mundo. As entidades religiosas desde o início da onda terrorista que procuraram apoiar os deslocados com produtos alimentares, em ligação com entidades internacionais.
Segundo as notícias juntaram-se agora e tomaram decisões simbólicas e significativas. Desde logo a marcação de dias e horas em que se farão orações pela paz. Cada um na sua comunidade de fé, igreja ou mesquita, dando ao povo a imagem de unidade espiritual mesmo que cada um o faça de acordo com a sua tradição religiosa.
Depois, combinaram encontros periódicos das lideranças religiosas, de modo a partilharem informações e conceberem as melhores formas de intervenção colectiva, assim como reuniões periódicas com membros do governo moçambicano para se fazer o ponto da situação, pensar o que cada um pode contribuir para aliviar o sofrimento das pessoas martirizadas e ajudá-las e retomar a sua vida normal. Finalmente acordaram em visitar em conjunto as regiões afectadas e críticas, de modo a passarem a imagem de empenhamento solidário e de unidade na acção.
Este conjunto de medidas espelham um excelente exemplo de diálogo inter-religioso de que o mundo precisa e um sinal de que a religião pode ser “parte da solução” neste conflito, que não é religioso na sua essência. Desde há séculos que os fiéis de diferentes tradições de fé convivem pacificamente por todo o país. Talvez por isso foi sem grande dificuldade que os representantes das principais religiões presentes no norte de Moçambique se reuniram no mês passado para elaborar e assinar um documento conjunto que traduz um compromisso e algumas linhas de acção.
Nele repudiam à uma os actos “terroristas e extremistas”, vinculando-se a trabalhar pelo “verdadeiro sentido da religião”, ou seja, a paz, a reconciliação e a fraternidade. Rejeitam também que o terrorismo seja associado ao Islão e comprometem-se a envidar esforços para evitar que mais adolescentes e jovens adiram “ao extremismo e a quaisquer tipos de violência”, assim como a acolher e reabilitar as vítimas da violência terrorista, além de cooperar com as autoridades civis e o governo, assim como com instituições e organizações humanitárias que trabalham em Cabo Delgado.
Esta Declaração Inter-religiosa de Pemba foi assinada a 3 de janeiro na sequência de um seminário inter-religioso, pelos representantes do Conselho Islâmico de Moçambique, da União de Jovens Muçulmanos, do Conselho Cristão de Moçambique e pelo bispo católico de Pemba, entre outros e terá sido inspirado na Declaração de Abu Dhabi sobre a “Fraternidade Humana”, assinada em 2019 pelo Papa Francisco e pelo imã de Al-Azhar, Ahmad Al-Tayyib. A filosofia do documento é justamente rejeitar a violência e a instrumentalização da religião para justificar actos de terrorismo.
Acresce que à profunda crise humanitária resultante da violência terrorista e às medidas restritivas de prevenção da pandemia, juntam-se ainda as desigualdades sociais, o analfabetismo, as polarizações ético-religiosas, a corrupção e outros fenómenos atentatórios da dignidade humana, hipotecando assim o desenvolvimento e a construção duma sociedade inclusiva.
Afinal, segundo crêem os signatários do documento, a religião “visa criar felicidade, reconciliação e paz na sociedade e, por esta razão, repudiamos e distanciamo-nos de atos e pessoas que deturpam doutrinas religiosas para justificar qualquer tipo de violência”. E é isso que justifica investir no diálogo inter-religioso, a capacidade de superar as desconfianças e promover a compreensão mútua, já que “todas as religiões fazem parte do desígnio de Deus Altíssimo (…), nenhum verdadeiro líder religioso ou profeta jamais ensinou a violência”. A propósito, a Bélgica expulsou em Outubro passado o imã marroquino Mohamed Toujgani, um incendiário que exortou à queima de judeus, tendo sido considerado uma ameaça à segurança nacional.
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