Sou uma pessoa com elevado grau de ceticismo no que respeita à bondade alheia. Por essa mesma razão, tal como Diógenes – esse cínico que segundo diz a lenda vivia num barril – saio todas as noites para a rua levando uma lamparina que, ao iluminá-lo, me desvende o homem mais realizado do planeta. Aquele cuja imagem sobrevive, mesmo depois de vários atos que seriam inenarráveis para qualquer outra civilização. Aquele que não tem o castrante superego que assola os comuns dos humanos, mas sim apenas o seu, muito próprio, impulsivo, estimulante e catalítico id, para usar a mesma terminologia que o reputado doutor Segismundo Freud. Em suma, alguém como o nosso presidente da República.
Para os cidadãos menos informados, o professor Marcelo Rebelo de Sousa, a partir deste momento simplesmente designado como Marcelo, dispõe de uma forma física admirável. Circulou para aí esta semana um vídeo, muito criticado, com ele a dar pulinhos no palco do acampamento do Corpo Nacional de Escutas (aos quais erradamente muitos chamam escoteiros) enquanto gritava “Salta ACNAC! Salta CRAC! Salta CAR…! Salta ARGH” ou algo que soava parecido com isto. Houve muito boa gente a gozar com a situação. Nanja eu.
Quando era novo, corria habitualmente mais um amigo de Cascais ao Guincho e voltava, ainda a praga das meias-maratonas vinha longe. Uma vez chegámos à praia, era um agreste mês de Março, e só uma pessoa havia na areia, placidamente deitado usando os seus braços para segurar o pescoço levantado, tal qual uma almofada. Ficou assim uma eternidade. Os músculos não se moveram apesar da tensão. Desistimos de ver até quando mais ele aguentaria a dita posição e voltámos para trás.
O ar de beatitude de Marcelo nas areias do Guincho, indiferente aos gritados gargarejos das gaivotas, lembrou-me que ele se tornou mestre de Aikido no dojo do mestre Georges Stobbaerts, de boa memória, lugar onde eu mesmo assistia, miúdo e deliciado, a aulas de Kendo que atualizavam o Kenjutsu dos samurais, como nos filmes de Kurosawa. Assim o descreveu Vítor Matos na sua biografia, intitulada singelamente ‘Marcelo Rebelo de Sousa’: “Praticante de aikido, levanta-se de manhã para ir ao jardim fazer o exercício da saudação ao Sol daquela arte marcial”. Para quem não sabe, o aikido é praticado através da combinação de movimentos atacantes, redirecionando a força adversária, ao invés de combatê-la diretamente. Tal como o desenvolveu o mestre Morihei Ueshiba, o aikidōka conduz o impulso atacante a partir da transformação dos movimentos dos oponentes. Uma simples visualização no You Tube ao vídeo ‘Como Marcelo se antecipou a Trump e outros apertos de mão caricatos’ permitirá perceber aquilo de que falo.
Aqui chegados, os leitores mais impacientes perguntar-me-ão “Mas que raio tenho eu a ver com isto e porque carga de água me interessa esta conversa da treta”. Eu explico: termos um presidente da República que dá umas braçadas na Praia do Peixe e dela sai para ir comer um polvo de Cascais assado ao restaurante ‘O Pescador’, sorridente e exalando saúde por todos os poros e ao mesmo tempo, se for preciso, pronto a partir os ossinhos do atacante mais mal-intencionado, é um luxo. No final das contas, quem é que gostaremos de ter ao nosso lado se a coisa der para o torto? Um aikidoka Marcelo ou um palavroso político qualquer a tentar vencer o bandido pelo cansaço?
Imagino a cara esmorecida de alguns leitores (e de algumas leitoras, vá) a ler isto e a recordar com um esgar condescendente o nosso presidente ainda há dias aos pulinhos, enquanto gritava “Salta ACNAC! Salta CARC! Salta CARAK…!” perante muitas centenas de jovens escutas, ou a conduzir um carrito enquanto foi pseudo-entrevistado transportando uma Anabela Neves em êxtase. A esses recordo as palavras do fundador do escotismo, Lord Baden-Powell: “A felicidade não é um mero prazer, ou o simples resultado da riqueza. É, isso sim, a consequência do trabalho ativo em vez do prazer passivo”. O nosso presidente trabalha ativamente para ser feliz. E nós devíamos aprender a sermos felizes com ele. Ou, como se diz no Aikido, “Masagatsu agatsu, katsuhayabi”.
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