Manhã
O ego é uma coisa tramada. Citando Joseph Fort Newton, “Um egocêntrico não é um homem que pensa demasiado de si próprio. É um homem que pensa demasiado pouco das outras pessoas”. Recordei estas palavras depois de ler o artigo no ‘Observador’ do Professor Aníbal Cavaco Silva.
O artigo, que António Costa afirma não ter lido – tal como aliás Cavaco assegurava não ter conhecimento de nenhuma das notícias que lhe eram desfavoráveis – é uma provocação ao atual primeiro-ministro. Mas essencialmente um panegírico ao próprio Cavaco Silva.
Os meus amigos de direita (recordo que sou um social-democrata da escola nórdica, o que na prática faz de mim um proto-socialista) adoraram. O artigo, na opinião deles, “foi um arraso”. Já na minha foi um exercício umbiguista, numa altura completamente descabelada.
Sem uma palavra de parabéns a Luís Montenegro pela sua expressiva vitória um par de dias antes, sem uma linha dedicada aos militantes que foram a votos numa altura crucial para o (ainda) principal partido da oposição, Cavaco estende a sombra dos seus sucessos passados sobre o novo líder ainda este nem tempo teve para se instalar na S. Caetano à Lapa e elenca as suas reformas, sublinha as suas maiorias, recorda os seus acordos, nos seus governos, sob a sua liderança. Narciso acha feio o que não é espelho, canta Caetano Veloso.
Tarde
Almoço convívio da C.ART.6552, liderada pelo meu tio Fernando. No próximo ano cumprir-se-ão 50 desde que souberam, na derradeira fase antes do embarque em Maio de 1973, que afinal não iriam para São Tomé e Príncipe com as famílias mas sim para Cameconde, na Guiné. Todos os homens voltaram vivos da tremenda experiência da guerra num lugar particularmente terrível, exceto um que morreu durante uma licença num acidente de táxi em Bissau. Estava escrito, dirão aqueles que não acreditam que Deus joga aos dados.
Aqui no Alentejo o almoço é bacalhau e ensopado de borrego. Bebe-se vinho, obviamente. Canta-se o fado. Recordam-se momentos cuja importância só eles, os que lá estiveram, efetivamente compreendem. Olho para o meu tio e vejo que parte dele está lá ainda, no Cameconde, a sul, entre a fronteira e o rio Cacine. ‘Honra e Dever’. Sopra-se o bolo que ostenta no guião a S. Tomé onde nunca chegaram a ir. 50! Para o ano já faz 50 mas parece que foi ontem. Não é, ó nosso capitão!?
Noite
Leio de uma assentada esta pequena pérola. É-me cada vez mais raro ser agradavelmente surpreendido por algo ou alguém, de forma a quase considerarmos o sucedido como uma serendipidade. E foi isso que sucedeu comigo aquando da leitura de ‘Ama o precipício – Viagem à Mata Nacional do Buçaco’ e uma das mais recentes obras integradas na coleção ‘Retratos’ da Fundação Francisco Manuel dos Santos. Investigadora de etnobotânica, Susana Neves envolve-nos os factos históricos numa linguagem fluida e apelativa e leva-nos numa incursão pelo bosque sagrado dos Carmelitas que depois Wellington ocupou e tanto sangue viu jorrar entre os seus cedros.
“Surgiram impressões várias e diversas, descobertas inesperadas, um maior entendimento e, sobretudo, um grande respeito pelo genius loci do Buçaco, a meu ver ainda vivo e atuante’, escreve Susana. As leituras cruzam-se. Interrompo e vou até à estante buscar o ‘Tratado da Árvore’ de Robert Dumas: “É da fascinante materialidade da árvore que jorra o seu inigualável poder simbólico”. Enquanto em Paris, no parque de Champs de Mars, ativistas se agarram aos plátanos condenados ao abate pelo betão, regresso ao livro da Susana e aos cabelos de D. Inês que viajaram até ao Brasil, apenas para serem desbaratados pelo vento ou para os seus ninhos pelos colibris. Sic transit gloria mundi.
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.