Os portugueses parecem saídos do livro ‘O Médico e o Monstro’. Tal como a personagem criada por Robert L. Stevenson, somos à vez o ajuizado Dr. Henry Jekyll e o perigoso egocêntrico Sr. Edward Hyde. Tanto cumprimos a Lei com o rigor de um zelota como, no momento a seguir, descambamos no maior dos granéis como punks aos gritos de “no future”. A ciência explicará isto, certamente. Ou nem por isso. Aliás, andamos há anos a levar gerações inteiras para cursos de sociologia e parece-me revelador que nenhuma tese tenha saído das faculdades a explicar este fenómeno.
Vejamos o caso da Covid. Ainda há poucos dias, o especialista em administração hospitalar Manuel Delgado escrevia neste mesmo site sobre a sexta vaga da doença (ou a sexta praga, como prefiro designá-la) chamando polidamente a atenção para o facto de que “a realização de queimas das fitas ou de comemorações alusivas à conquista de títulos desportivos, podem ter contribuído para agravar o problema”, a coincidir com o fim da obrigação do uso da máscara na maioria dos locais fechados. Não sou especialista, mas parece-me que o condicional aqui é desnecessário e essas celebrações influiram certamente para o aumento dos contágios.
Que impulso selvático levou os portugueses a deixarem subitamente de fugir uns dos outros no passeio e agora se amontoarem em orgias de gente vestida? Por que razão recebi o convite para a apresentação de um livro e fugi a sete pés quando vi que lá não cabia uma agulha e estavam todos ao colo uns dos outros em feliz comunhão do SARS-CoV-2? Ignoro.
Um vídeo viralizado muito recentemente nas redes incluía uma mulher berrando palavrões e ameaçando uma enxurrada de pancadaria a um jovem cujo único pecado tinha sido o de lhe chamar a atenção para a falta de máscara. Perante a fúria, digna de um rinoceronte, e certamente temendo ir acrescentar ainda mais caos ao SNS, o jovem naturalmente recuou e meteu o bom senso no bolso. Andamos desvairados.
Quanto ao Governo, já ninguém percebe o que acha disto tudo. Deixámos de ouvir falar as figuras que nos entravam dentro de casa todos os dias. Onde pára o senhor das compotas? A ministra que já era dada como possível candidata ao prémio Nobel? O senhor Almirante que nos salvou da hecatombe, organizando as vacinas com a pontualidade um metronomo? Não sei. É verdade que tenho estado entretido a ver séries e a ouvir malucos sobre a guerra na Ucrânia. Mas se têm aparecido nos tempos recentes a falar da Covid não dei por isso. A última notícia que encontro sobre a diretora-geral da Saúde titula que Graças Freitas avisa que “Portugal tem de estar atento a velhas ameaças de doenças” como a poliomielite, que lamentavelmente ressurgiu em Moçambique. Sobre a COVID, silêncio. Já Graça Freitas diz que testes gratuitos nem pensar, enquanto nas farmácias nos pedem 25€ só para nos enfiarem um escovilhão pelas narinas dentro.
Há mais de uma semana, houve uma reunião juntando a ministra e uns peritos e o resultado da peritagem foi o mesmo que o da inspeção periódica que o senhor António faz aos amigos na sua oficina que não digo onde fica. Nem sequer podemos dizer “Tudo bem, siga a Marinha” porque o senhor Almirante Gouveia e Melo, da última vez que falou aos jornalistas há uma semana, não estava a salvar pessoas mas uma tartaruga aquática.
É verdade que, quando questionado, afirmou que se fosse necessário reunir novamente uma task force para a gestão do combate à Covid-19 o Governo poderia contar “naturalmente” com os militares. Mas também é verdade que não se incluiu a sim mesmo, o que aliás acho muito compreensível.
Os portugueses têm tendência para meter os problemas no lixo, como sujidade debaixo do tapete. O problema é que, a agirmos desta forma, o problema da Covid irá continuar a ressurgir, reciclado e em novas pragas, ou vagas, pelos anos que virão. Organizem-se, pá!
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