Os muitos milhares de leitoras e leitores que aguardam ansiosamente esta minha crónica todas as semanas já entenderam por certo que aprecio juntar assuntos que aparentemente nada têm a ver uns com os outros, com a intenção de transmitir um pouco daquela que é a tantas vezes absurda realidade que nos cerca. Tendo em conta que os potenciais pretextos são inúmeros, a tarefa é assaz complexa mas sinto isto como um serviço público que presto aos cidadãos e ao mundo.
Esta semana, por exemplo, esteve recheada de acontecimentos de grande magnitude; o debate na generalidade do Orçamento do Estado, que o Conselho das Finanças Públicas alerta poder vir a ser afetado pela continuação da guerra e pelo surgimento de novas variantes da Covid-19, a visita de Guterres à Rússia e à Ucrânia onde foi – diz a imprensa “brindado com explosões” ou ainda a galopante inflação que em Portugal chegou aos 7,25% em Abril e que não sei se está, ou não, relacionada com o cada vez mais tempo que perco a tentar encontrar areia para o gato.
No entanto, uma leitura das notícias mais lidas neste mesmo site revela um fenómeno curioso: Em dez, as principais oito nada têm a ver com os temas magnos que assolam o país e o mundo. Desde o responsável pela Polícia Judiciária que andou à pancada por uma questão de trânsito, até ao Youtuber que despenhou um avião para mais visualizações, passando pela “relação tóxica” entre Johnny Depp e Amber qualquer coisa, mais o deputado apanhado a ver pornografia no parlamento britânico e as bases de ADN e ARN encontradas em meteoritos, dá para perceber que as pessoas procuram distrações, fait-divers, algo que escamoteie os medos que se vão acumulando no horizonte e que, ao mesmo tempo que vão crescendo cada vez mais inescapáveis, mais convidam ao escapismo.
No meu caso, para contrabalançar também a poeira dos dias que vivo nas redes sociais, procuro a fuga junto de clássicos como a ‘Eneida’, agora em boa hora traduzida por Carlos Ascenso André, numa edição bilingue da Quetzal. Neles, como nos livros sagrados e na melhor ficção científica, descobrimos sempre o intemporal pulsar universal. “Eis-me aqui, pobre e sem nome, a caminhar nos desertos da Líbia, expulso da Europa e da Ásia”. Este lamento de Eneias é hoje tão atual como só os clássicos conseguem sê-lo, refletindo os arquetípicos dramas desta Humanidade que, na Bíblia, nasceu desde logo com o conceito de desterro, Adão e Eva banidos e exilados, os primeiros obrigados a sobreviver numa terra estranha, como o número crescendo de refugiados em todo o mundo.
O conceito de ser ‘Estranho numa Terra Estranha’ deu aliás o título a um outro livro, este assinado por Robert A. Heinlein, que criou a espantosa e muito interessante – para o debate atual – figura da “justa testemunha”. As “justas testemunhas” são pessoas treinadas para observar e registar acontecimentos exatamente como os vêem e ouvem, sem extrapolações, juízos ou deduções. Possuem uma memória eidética ou fotográfica e, quando questionadas por exemplo sobre a cor de uma casa, dizem que “por fora é branca” dado que não estão a ver o seu interior.
Nos tempos que correm, todos parecemos cada vez mais “injustas testemunhas”. Opinando com base em títulos de notícias que não lemos, escolhendo um lado e atacando o outro sem contemporizações, chamando “diálogo” e “debate” a pugilatos verbais. É um mau caminho. Que nos conduz até aos extremos, dicotómico e contrário à inteligência. É um caminho de fuga à realidade. “Não és tu, é a realidade que se engana!”, exclamava a provocatória frase que até há uns anos se podia ler numa parede da Avenida de Berna. Não é verdade. Somos nós que nos enganamos. E cada vez mais, infelizmente.
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.