“Temos de evitar uma 3ª Guerra Mundial” afirma o secretário-geral da NATO. Pois, assim de repente convém. Em entrevista à VISÃO, diz o primeiro português a combater na Ucrânia: “O que vocês veem na televisão são coisas horríveis que, na realidade, são dez vezes piores”. Desculpem-me recorrer ao palavreado um pouco rude dos homens de ação, mas isto está tudo uma bela merda. Causadora de insónias e do cansaço da mente e do espírito. É a altura apropriada, portanto, para ler “Melancolia em Tempos de Perturbação” da neerlandesa Joke J. Hermsen, agora editado pela Quetzal.
Como escreveu a filósofa, “o desafio diante de nós é o de transformarmos o nosso isolamento numa solidão compartilhada”, sendo que, como humanos, somos entidades capazes de “transformar a perda e a transitoriedade em criatividade e esperança”. Leio isto e penso de imediato nas crianças ucranianas cujos desenhos vejo publicados pela Reuters, um deles com um soldado a olhar através da mira da espingarda com flores vermelhas no comprido cabelo preto, outro com uma rapariga no baloiço debaixo de um sol sorridente, num céu atravessado pelos bombardeiros russos. Entretanto, Putin enviou esquadrões de execução contra o seu próprio exército com ordens para abater quem tentar fugir das tropas ucranianas. O mesmo que sucedeu em Estalinegrado, durante a 2ª Grande Guerra. A história repete-se, já o sabemos. Numa fotografia vejo uma criança rodeada de túlipas e com um cartaz nas mãos. A legenda diz que a rapariga deu todas as suas economias para a compra de um colete à prova de bala para um defensor da sua cidade. Quando descobriu que não era suficiente saiu para vender flores e receber a parte que faltava. Verdade ou propaganda? Já me é indiferente. Tudo uma amálgama de imagens e palavras. Temos o medo. Ele amanhece connosco. A vontade é não ter braços para o receber.
Para me distrair decido atualizar-me sobre em que fase está o amuo de Marcelo com Costa por ter sabido do novo governo pela comunicação social mas logo desisto. Apetece-me pouco prosseguir com a inútil análise dos seus estados de alma, antes me impele novamente a leitura do livro de Hermsen que começa com uma citação de Susan Sontag: “A depressão é a melancolia desprovida do seu encanto”. Chove. Faz frio. O gato dorme entre as minhas pernas e então acontece um momento de quase satori, um silêncio em que nada cabe exceto a memória dos biscoitos da minha avó, humedecidos pelo leite com chocolate ao adormecer. Já escrevi isto uma vez; transparente e invisível é aquele que se esquece de si mesmo. “Assim que o Homem começou a pensar sobre si mesmo, começou também a refletir sobre o tempo. O que é o tempo? De quem é o tempo?” escreve Hermsen falando sobre Kairós, o deus do tempo oportuno. Filho mais novo de Zeus e de Tyche, a deusa da prosperidade e com um hino a ele dedicado por Íon de Quio. É “o lapso de tempo em que nos encontramos quando fazemos uma pausa, fixamos a nossa atenção numa coisa ou nos concentramos profundamente”.
Tento concentrar-me mas uma sirene surge quebrando o silêncio, enquanto releio algo que escrevi sobre Bettelheim, o autor de ‘Psicanálise dos Contos de Fadas’: Na Viena da sua infância no começo do século XX, Bruno Bettelheim adorava os cacetes quentinhos que eram a mais conhecida especialidade da padaria Âncora. Devorava-os ao pequeno-almoço e entre as refeições. Foi esse prazer do jovem Bruno pelos pães Âncora que o ajudou, como partilhou num dos seus ensaios, a perceber mais tarde as madalenas de Proust. Comigo são esses biscoitos de limão da minha avó materna. Imperfeitos na sua forma aquecendo-me as noites.
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.