Fevereiro de 2022. Século XXI, portanto. Um texto no Observador desperta-me a atenção e afigura-se-me, numa primeira leitura, escrito pelo Padre Gonçalo Portocarrero de Almada, recorrente colunista. No entanto, a ausência de substrato literário na prosa apela a que verifique a autoria e comprove que o texto é afinal assinado por Francisco Brás de Almeida, um jovem analista de risco que não terá avaliado condignamente o perigo que ele próprio correria ao aventurar-se nas águas turbulentas da opinião sem amarras sobre temas que nitidamente não domina, afogando-se nas ondas da sua própria indignação.
Contra a já vetusta e conhecida peça ‘Os Monólogos da Vagina’, criada nesse já longínquo ano de 1996 em que ainda mal seria nascido mas cuja existência parece ter descoberto apenas agora num cartaz entre os muitos espalhados pela capital, Francisco insurge-se e, jocosamente (ou assim o crê), destaca que “melhor seria apelidada de ‘Monólogos da Chacina’, dado que massacra as mulheres e o seu íntimo, bem como tantas crianças que se cruzam com os seus reclames”.
Enfim. Inibo-me de reproduzir aqui outras das suas considerações, suscitadas pela vontade declarada (que partilho) de proteger as crianças e as mentes mais frágeis. Mas a saudosa recordação de quando, em pequeno, foi levado “ao mesmo recinto para assistir à peça ‘A Canção de Lisboa’, de Filipe La Féria”, deu-me que pensar. Como se diz nos tempos bárbaros que vivemos, foi “food for thought”. Com efeito, se para o autor do artigo “A história de Vasco Leitão, que depois de uma vida boémia e fútil se redime e se torna num exímio estudante de medicina, é certamente mais pedagógica do que um monólogo sobre menstruação ou roupa interior”, que outras novidades pós-1933 não o chocarão?
Ao longo da semana, fui colecionando alguns exemplos muito recentes de acontecimentos que, se até a mim abalaram, teriam certamente levado ao estado de coma assistido um analista de risco mais desprotegido. Vejamos: A Minnie decidiu trocar o vestido por uma fato-calça às bolinhas concebido por Stella McCartney, o que levou a Fox News à efervescência e uma colunista do Washington Post a vir ao terreno sossegar as consciências: “The right worries Minnie Mouse’s pantsuit will destroy our social fabric. It won’t”. Em simultâneo, com a distribuição da versão beta do iOS 15.4, a Apple lançou o emoji de um homem grávido. Porquê? É melhor nem saberem. Caso insistam na vossa curiosidade, limito-me a explicar que envolve a necessidade sentida de equiparar emojis com diferentes géneros, levando assim a que a designação “homem de barriga inchada” e “pessoa de barriga inchada” fosse alterada. Transcrevo: “Embora seja verdade que o U+1F930 é por vezes utilizado humoristicamente para transmitir um conceito geral de inchaço, isto não tem qualquer relação com a sua semântica real como um personagem Unicode. U+1F930 foi codificado para um propósito muito particular – para representar a gravidez e a paternidade – e alterar retroativamente o seu significado oficial para abranger qualquer inchaço estomacal seria tanto desrespeitoso para com os pais como prejudicial para os dados existentes”, diz a empresa. Perceberam? Nem eu, mas ainda não desisti e sinto que estou quase lá. A exegese de textos deste calibre é mais laboriosa do que atingir o Nirvana.
Ainda no que respeita a estes temas e numa altura em que todos dedicamos horas e horas a plataformas de streaming, é muito interessante comparar duas séries, ambas recém-estreadas na HBO e passadas na mesma cidade. Confrontar ‘The Gilded Age’ com ‘And Just Like That’ é um exercício profundamente didático. Na primeira série estamos na Nova Iorque dessa “Era Dourada” de que fala o título e que mediou entre 1870 e o final do século XIX. Os recém-chegados a uma cidade em expansão, vistos como patos bravos e que dão pelos nomes de Vanderbilt ou Rockfeller, enfrentam a resistência da classe instalada com mais antigas origens e que se designa como aristocracia, mas não passando na verdade de uma outra burguesia, com riqueza mais antiga e de raízes europeias. Na série, enquanto os homens pelo pragmatismo dos negócios pretendem transpor a diferença classista, as mulheres resistem e tudo fazem para defender os seus territórios, as suas fronteiras assentes em velhos hábitos e preconceitos sociais. Homens e mulheres habitam mundos estanques que se intersectam mas raramente comunicam.
Uma das atrizes em ‘The Gilded Age’ é Cynthia Nixon, a Miranda de ‘And Just Like That’. Nesta outra série, tal como as suas amigas recuperadas de ‘O Sexo e a Cidade’, Miranda chegou aos 55 anos e agora descobre o verdadeiro amor com Che, a personagem que não é do género masculino nem feminino representada pela atriz e cantora mexicana Sara Ramírez. “They”, como agora sói dizer-se. Cynthia, a atriz, é assim o elo entre duas séries, dois tempos, duas Nova Iorques tão separadas uma da outra como a Terra de Neptuno.
Se me perguntarem em qual delas gostaria de viver, direi que a atual me parece de longe bem mais livre e divertida de se habitar. Mesmo num tempo que inclui uma Minnie de calças, bonecos de homens grávidos e cartazes espalhados pela cidade com a palavra “vagina”. Mas talvez isso aconteça porque tendo a apreciar essa vida “boémia e fútil” que desagrada ao jovem Francisco, referido no início desta crónica. E, para piorar, já não vou a tempo de ser um “exímio estudante de medicina”. Aliás, nem de medicina nem de outra coisa qualquer. Tempus fugit e, tal como as heroínas de ‘O Sexo e a Cidade’, também eu já cheguei aos 55. Qualquer dia, só me restará a ivaginação.
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