E, de repente, o triunfante deputado André Ventura, cujos discursos virais invadem as redes como se fosse o rei do facebook e da cassete pirata, leva um murro no estômago, que lhe causa mais danos do que quinhentos e quarenta e sete ralhetes de Ferro Rodrigues, no Parlamento: um tipo fora do sistema, um Zé Ninguém político de quem não se conhecia uma única opinião para além do mundo fechado da bola, aplica-lhe um uppercut que o leva ao tapete. E André Ventura, tão hábil a cavalgar indignações, estava preparado para tudo menos para isto: uma indignação! Ter de enfrentar a justa ira de uma figura da cultura popular, mediática, nacional, com estatuto de semi-herói e insuspeita de triquitiquis politiqueiros. Uma figura fora… do sistema. Vergonha! Vergonha!
Se André ventura, como apregoa, fosse um político contra o sistema, não criticava os ciganos: defendia-os. É que é difícil imaginar uma comunidade tão fora do sistema – e, frequentemente, tão contra ele… – como a comunidade cigana. Ora, o que André Ventura critica aos ciganos, porém, é a incapacidade de se adaptarem ao sistema! Mas se ele é um deputado fora do sistema!… Devia era começar por ir viver para um acampamento cigano! E, depois, conversávamos…
Ricardo Quaresma, a quem se pode apontar o facto de ser parte interessada na discussão dos ciganos, faz desse seu interesse a sua força: como ofendido, evoca as emoções, as mesmas de que André Ventura usa e abusa no seu discurso demagógico e basista. E as emoções, em politica, são decisivas. Se o deputado é insuperável nos seus repiques parlamentares contra os representantes do “sistema”, se é atento às armadilhas de entrevistadores profissionais e se é atropelante e esmagador no debate politico-televisivo, vê-se, subitamente, completamente desarmado – e desorientado – quando atacado de cernelha por um tipo de figura contra o qual não tinha antídoto: um adversário não conhecido por ser bem pensante ou politicamente correto, também ele vindo de fora do sistema. Perdendo o chão, em palpos de aranha, sem discurso nem resposta, Ventura é obrigado a ver como as redes sociais, onde governava, gozam, agora, com ele, com mèmes irresistíveis associados a um movimento de futebol chamado “trivela”. Por um momento, Ventura é a chacota nacional. A velha frase do facebook que acompanha os seus vídeos – “André Ventura arrasa fulano, André Ventura arrasa sicrano” – transformaram o arrasador no arrasado. O trocadilho da trivela invade o espaço mediático e, no seu esbracejar, Ventura atira-se para o chão, assumindo um pouco convincente esgar Neymariano. A eficácia do ataque de Ricardo Quaesma é um caso de estudo – e é por aqui que pode começar a desconstruir-se o boneco pouco convincente que André Ventura tem andado a tentar moldar para si próprio.
E, no entanto, os alertas de André Ventura não deviam ser varridos para debaixo do tapete das consciências autosatisfeitas do politicamente correto…
E, no entanto, os alertas de André Ventura sobre as especificidades da comunidade cigana não deviam ser simplesmente varridos, como lixo sub civilizacional, para debaixo do tapete das consciências auto-satisfeitas do politicamente correto. Ele tem ali um ponto: tendo identificado um problema que é sentido por uma opinião pública que não tem voz, André Ventura passa bem junto dessa camada populacional, que sofre uma sensação de insegurança, ao mesmo tempo que não compreende a condescendência dos poderes, das autoridades e da segurança social perante a comunidade cigana, e que, no terreno, no dia a dia, enfrenta situações que as elites bem pensantes e bem instaladas nos seus bairros da moda e nos seus condomínios fechados ignoram. Esse discurso de pouca simpatia com os ciganos, aliás, é bem compreendido por um certo eleitorado do PCP – que o digam os comunistas de Loures, onde Ventura foi vereador… – que se radica, sobretudo, no Alentejo e nas franjas de Lisboa. Raramente vimos responsáveis do PCP a insurgirem-se contra o discurso alegadamente xenófobo de André Ventura (que tanto irrita o Blcoo de Esquerda) por saberem que esse discurso cala fundo no seu próprio eleitorado comunista. Vai daí, Ventura teve resultados interessantes no Alentejo profundo – e o Livre ganhou nas zonas in de Lisboa… Se a esquerda tapar os olhos, a boca e os ouvidos ao que André Ventura diz, vai fazê-lo crescer, mais e mais.
A resposta, que já se percebe, embora cheia de boas intenções, não resolve o problema, porque se dispensa de tentar perceber o âmago da cultura cigana. A criação de medidas de discriminação positiva para favorecer a integração dos ciganos – fazê-los chegar às universidades, às empresas, às associações da sociedade civil – são, também, uma forma de racismo, por se cinjirem aos padrões da “boa sociedade branca”. Alguém lhes perguntou se eles querem ser integrados neste tipo de padrão? Foi este tipo de lógica que transformou os judeus em cristãos-novos – com os resultados que se conhecem. A esquerda caviar também devia pensar nisso.
Em 1986, o famoso caçador de nazis, Simon Wiesenthal, foi batido, na reta final, pelo seu rival judeu Ellie Wiesel, na corrida ao Prémio Nobel da Paz. Apoiado pelos EUA, Wiesel tinha uma máquina muito mais oleada, mas a disputa com Wiesenthal – de quem fora amigo e admirador – e que fez, dos dois, inimigos figadais, começou pela questão cigana. Wiesel vetou uma ideia de Wiesenthal para que o Museu do Holocausto, em Washington, pudesse incluir uma secção dedicada aos ciganos martirizados nos campos de concentração nazis. Wiesenthal tendia a irmanar todos, no Holocausto, pretendendo que os judeus não deviam apropriar-se dessa memória histórica para desempenharem o papel de únicas vítimas. E costumava dizer que, para além dos seis milhões de judeus gaseados, havia mais 4 milhões de outras proveniências, nomeadamente, testemunhas de Jeová (uma seita pacifista apostada em boicotar o esforço de guerra alemão) e… ciganos. Isto, para não falar das centenas de milhares que morreram no programa de eutanásia do regime nazi, o Aktion T4, eufemisticamente designado por “morte misericordiosa”, onde as vidas consideradas inúteis, nomeadamente, as dos deficientes, eram impiedosamente ceifadas. Os números de Wiesenthal eram bastante inflacionados, mas não há a mínima dúvida histórica de que a comunidade cigana foi tão perseguida como a judaica – sendo que aquela nunca teve a mesma força, o mesmo dinheiro, a mesma organização nem os mesmos meios desta, para fazer reconhecer à posteridade o seu sacrifício. Ora, numa entrevista ao CMTV (canal de que é colaborador), André ventura vitimizou-se, numa piedosa explicação sobre o caso Quaresma – e foi a primeira vez que o vimos à defesa: “Até já falam em Auschwitz!”, comentou.
Ventura ainda está a tempo de impedir que, do seu laboratório de aprendiz de feiticeiro, no CHEGA, saia um Frankenstein que deixará de poder controlar
Ninguém falou em Auschwitz. Ventura é que falou. E é evidente que ninguém, no seu perfeito juízo, acreditará que André Ventura deseja, em 2020, mandar a comunidade cigana para as câmaras de gás. (Quanto muito, confiná-la, já percebemos, em tempo de pandemia…). Mas é inquietante pensar que este jovem advogado, pai de família, inteligente, crente em Deus, pacífico e afável nas suas relações pessoais – exatamente o mesmo perfil de inúmeros membros das elites alemãs de 1934 -, se tivesse nascido algures por volta de 1900, e tivesse tido responsabilidades políticas no contexto da Alemanha dos anos 30 e 40, poderia ter tido uma forte possibilidade de concordar, precisamente, com a necessidade da existência de Auschwitz.
André Ventura ainda está a tempo de fazer o seu exame de consciência, antes que, do seu laboratório de aprendiz de feiticeiro, no CHEGA, liberte forças que não previu – e de lá saia um Frankenstein que deixará de poder controlar.