Tive um professor de Filosofia – tinha que ser de Filosofia… – que dizia , para escândalo dos seus alunos: “A guerra e a peste são as melhores amigas da Humanidade”. A tese tem os seus fundamentos. Os interesses da Humanidade, vista como um todo contínuo, são muitas vezes incompatíveis com os interesses dos indivíduos, ou, até, com os de uma geração de indivíduos (ou seja, neste caso, a geração que combate numa guerra ou que é dizimada por uma peste). A guerra, nesta ordem de ideias, permite saltos científicos e tecnológicos que tornarão a vida dos vindouros muito melhor – e muito mais longa. A peste “limparia o sangue”, eliminando os mais fracos e tornando os sobreviventes – e os seus descendentes – mais fortes. Esta argumentação, de contornos eugénicos inquietantes, pode ser analisada, por um momento, de um ponto de vista puramente racional ou, se quisermos “desumano” – se por desumanidade entendermos a condenação fria e implacável de um grupo de indivíduos. Nesta lógica alternativa, o novo coronavírus viria anunciar boas notícias: limparia o ambiente, do ponto de vista da ecologia, eliminaria os mais fracos, imunizaria a maioria dos membros da espécie e, na herança genética subsequente, tonaria os nossos filhos e netos mais resistentes.
Ao longo da História da Humanidade, as pestes vieram e desapareceram, eliminando, pelo caminho, impressionantes fatias da população. De todos os pontos de vista, foram tragédias humanas incomensuráveis. A peste negra – e mesmo a gripe espanhola, que esteve entre nós há um século, uma gotícula no tempo – provocaram, na Europa, muitos mais milhões de mortos do que, atendendo ao que sabemos sobre a sua letalidade, o novo coronavírus alguma vez provocaria (em percentagem da população), mesmo que nada se fizesse. No entanto, nesses tempos um tanto ou quanto “pré-científicos” – o que inclui o estado evolutivo da medicina em 1918 -, a humanidade resignou-se à ideia de doença e de morte como um fenómeno funesto mas inevitável. A economia não parou, as pessoas não se fecharam em casa (apesar de alguns confinamentos e cordões sanitários geográficos limitados) e, no pretérito século, os loucos anos vinte sobrevieram, indiferentes a tudo.
O que hoje se passa é totalmente diferente. Duas guerras mundiais depois, e muitos avanços do ponto de vista da medicina, do Estado Social e dos valores civilizacionais conquistados, a ideia de morte tornou-se inaceitável, nas nossas sociedades, sobretudo nas ocidentais. A erosão da religião fez o resto. A descrença numa ideia de “vida eterna” da alma levou as mesmas sociedades ocidentais a centrarem todas as suas atenções na vida biológica e a substituirem , no seu imaginário, a noção de milagre do sobrenatural pela de milagre da Ciência. Mas a fé, e a fé na “vida eterna”, como motor da esperança, na verdade, pouco mudou – apenas alterou o seu objeto. Um fenómeno como o do novo coronavírus, que mata aleatoriamente populações desarmadas, faz, assim, com que as sociedades entrem num estado de negação, relativamente à arbitrariedade da morte em massa, ou, pelo menos, da morte sem luta, fazendo com que reajam de uma forma que, noutros tempos, seria considerada irracional: fechando as economias, os países e as pessoas em casa.
Esta emergência é ainda mais sentida quando se trata dos profissionais de saúde: como é possível que os únicos, de entre nós, habilitados ao combate contra o vírus, caiam nas trincheiras? Não será uma contradição nos próprios termos? A simples existência de tais vítimas exige que encontremos culpados, nomeadamente, os que deviam proporcionar mais material de proteção aos profissionais. Claro que, embora a calamidade da covid-19 não seja uma guerra – já la iremos –, são possíveis algumas analogias. Ora, como qualquer estratega saberá, as operações militares têm o seu contingente de “baixas previsíveis”. Mais do que isso, qualquer campanha tem um determinado “nível aceitável de baixas”. E mesmo equipados com as armas individuais, os capacetes, os coletes à prova de bala, as chapas blindadas dos seus veículos ou as lonas resistentes dos seus paraquedas, os combatentes são, ainda assim, as vítimas mais imediatas de uma guerra. Coisa diferente é enviar para a guerra médicos sem o material de proteção, ou munidos de material ineficiente, e fazer deles carne para canhão. O grande comandante ganha a guerra com golpes estratégicos e táticos e com mortos em combate. E tanto maior será quanto mais os primeiros conseguirem minimizar os segundos. Foi o que disse Churchill, que sabia do que falava: “As batalhas vencem-se através de carnificina e manobras. Quanto mais grandioso for o general, maior é o seu contributo em manobras e menor é a sua exigência em carnificina”.
Concedendo espaço a todas as analogias, convém que, neste ponto, se diga que o que enfrentamos não é bem uma guerra – e o termo apenas é aceitável como facilidade de expressão. Em primeiro lugar, porque, na guerra, os alvos primordiais são alvos militares ou industriais, e menos civis. Em segundo lugar, porque todo o conflito bélico pressupõe uma economia de guerra, e não o fecho da economia. Até na frente as tascas estão abertas, para venderem bebidas e cigarros aos soldados… Em terceiro ugar, porque, numa guerra, reconhecemos o inimigo e temos sempre uma hipótese contra ele. No caso do coronavírus, além de invisível, o inimigo é (para já) imbatível.
Mas, se da guerra queremos fazer uma comparação, uma ou duas perguntas práticas devem ser feitas, à luz das notícias dos últimos dias. A primeira tem a ver com a montagem de um hospital de campanha, no Estádio Universitário de Lisboa. O que se pergunta é: no caso de a pressão se tornar insuportável, o estado de emergência não prevê a requisição de instalações civis privadas – como nas guerras, lá está… -, para o esforço de combate? Alguns dos grandes hotéis da capital não podem vir a ser requisitados para cobrir a procura de camas, alocando às suas instalações o material e pessoal médico que seria alocado a outros hospitais de campanha? Com a vantagem logística de estas estruturas já possuírem roupa de cama, casa de banho privativa para cada cama e cozinhas, dispensando, portanto, a sua montagem de raiz?
Segunda pergunta: se a ordem é a de permanecer em casa – e trata-se de uma ordem cada vez mais globalizada, à escala europeia, desencorajando-se fortemente, por exemplo, as visitas da Páscoa -, porque é que se abre uma exceção para os emigrantes, e se deixa que atravessem em massa a fronteira, em viagens de “regresso”? Não falamos dos que se ocupam em atividades temporárias, fora da Pátria, mas dos que têm residência fixa nos países de acolhimento: porque é que não ficam, também, em casa?
George Orwell escreveu que “a forma mais rápida de acabar com uma guerra é perdê-la”. Ora, não é isso que queremos.