Reproduzem-se, aqui, as últimas duas perguntas e as últimas duas respostas de Diogo Freitas do Amaral, na entrevista concedida à VISÃO em junho deste ano:
Sente alguma mágoa por nunca ter desempenhado qualquer cargo político de eleição direta, à exceção de deputado?
Mentiria se lhe dissesse que não. Fiz política com gosto e tinha por objetivo ter sido primeiro-ministro ou Presidente da República. Não consegui. Tenho pena? Claro que tenho. Mas sendo um outsider, há muitos anos sem participação na política partidária, fui capaz de sublimar essas derrotas, percorrendo outros caminhos que, normalmente, os políticos derrotados não percorrem. E orgulho-me de ter liderado um dos partidos fundadores da democracia, em 1974.
É esse o legado que deixa a Portugal?
Apraz-me pensar que sim. Nem quero imaginar o que seria um CDS, naquele período, liderado por alguém com o perfil de um Donald Trump ou de um Erdogan. Num quadro propício a tentativas de golpes de generais como Spínola, Galvão de Melo ou Kaúlza de Arriaga, a implantação da democracia teria sido muito mais difícil e muito menos pacífica. E o meu legado, sem falsas modéstias, é o de ter contribuído para a implantação de uma democracia autêntica, que nunca mais foi posta em causa. E já passaram 45 anos.
Este é, talvez, o epitáfio perfeito de Freitas do Amaral, deixado à posteridade pela boca do próprio defunto. Mas, afinal, o que representa, na História de Portugal do século XX, esta figura carismática, controversa e, por vezes, misteriosa, e que faleceu esta quinta-feira, 3 de outubro de 2019, com 78 anos?
Entre os muitos livros escritos pelo fundador do CDS (de Direito, de Filosofia ou Ciência Política e, até, sobre a História de Portugal e sobre algumas das suas figuras, as que mais admirava, como D. Afonso Henrqiues ou D. Afonso III e que eram seus ascendentes remotos), o Freitas do Amaral/autor destaca-se pelos três volumes das suas memórias políticas. O primeiro volume, “O Antigo Regime e a Revolução”, é o melhor testemunho escrito jamais publicado sobre a última fase do marcelismo e a transição para a democracia, sendo nele incluído um relato objetivo e impressivo dos tempos do PREC, até ao 25 de novembro de 1975. Freitas brinda-nos com a sua escrita cativante, as suas revelações exclusivas e a sua interpretação inteligente. Possivelmente, é um livro que mereceria figurar entre as melhores obras sobre a História de uma parte do século XX português, se não fosse o facto de, ao ter sido escrito por um dos seus protagonistas, poder levar a pensar-se que terá pouco distanciamento. Não é, porém, essa a impressão que fica, da sua leitura. No segundo volume, Freitas continua a descrever-nos os primeiros anos da democracia, sendo particularmente interessantes as revelações inéditas sobre as circunstâncias da constituição da primeira candidatura de Ramalho Eanes à Presidência da República, bem como participação do CDS no efémero acordo de incidência parlamentar com o PS, em 1978. O terceiro volume, publicado este ano, é o seu próprio ajuste de contas com a História. Em cada página do livro se nota a sua preocupação em prestar contas, explicar aos desiludidos com a sua pessoa as razões da sua evolução política, e deixar o relato pessoal definitivo sobre a sua vida e obra. Um testemunho para a posteridade, notoriamente escrito e publicado num tempo em que já sabia que ia morrer: um livro de despedida. E esse é o tom mais tocante, mas também mais inquietante desta derradeira obra de Freitas, que, nota-se, terá sido escrita com grande sacrifício pessoal e dores físicas. Num certo sentido, por todas estas razões, “Um Percurso Singular” é, dos três exemplares, o mais pessoal e o menos objetivo.
De forma resumida, escolhemos 12 marcos essenciais da sua vida política, todos na perspetiva do ”fundador”, ou seja, ocorridos depois do 25 de abril de 1974, apesar de o professor de Direito – dos mais brilhantes da Universidade de Lisboa, e,depois, como fundador da Universidade Nova – respirar política desde sempre, tendo mesmo sido considerado, por Marcelo Caetano, para um lugar de ministro (que recusou), e onde teria sido o mais jovem do seu governo. É a vida política que nos interessa aqui revisitar, deixando o seu percurso académico e literário (também foi autor de peças de teatro) para outros espaços. E esta é, em 12 momentos, a história de um homem que, no 40.º aniversário do 25 de abril, confessou, à Antena 1, sem complexos, que, à data da Revolução, não era, ainda, um democrata convicto.
1974 A coragem de não ser socialista
Com, entre outros, Adelino Amaro da Costa – verdadeiro ideólogo do partido – funda o Centro Democrático e Social (CDS), de raiz democrata-cristã. Com o País a iniciar o PREC, e com todo o espetro partidário (incluindo o PPD, de Sá Carneiro, depois PSD) a preconizar “o caminho do socialismo”, o CDS é o partido mais à direita do quadro político português. Por isso, o povo da direita perfilha-o como seu, o que levará os seus dirigentes a dizerem que “as bases do CDS sempre estiveram à direita da sua liderança histórica”. Acossados em todo o País, os centristas são cercados, em janeiro de 1975, no célebre congresso do Palácio de Cristal, no Porto, por uma turba de populares orquestrados pela extrema-esquerda, clamando pelo linchamento dos “fascistas”. A presença de observadores internacionais obriga o Presidente Costa Gomes a enviar uma força de Comandos para repor a ordem e libertar os sitiados.
1975 A razão de ser um fundador
O CDS fica em 4.º lugar, atrás de PS, PSD e PCP, nas eleições para a Assembleia Constituinte, com 7,61% e com a eleição de 16 deputados (em 250). Subirá de forma impressionante na votação das legislativas do ano seguinte, obtendo 15,98%, elegendo 42 deputados e ficando à frente do PCP. O beneplácito popular legitimará o partido como uma das principais forças políticas da jovem democracia. Freitas consegue domesticar a extrema-direita e dá à direita uma legitimidade institucional e uma voz que, com um líder menos firme – ou menos moderado, leia-se o excerto da entrevista que publicamos a abrir este texto – teria dado origem a uma transição muito menos pacífica. É principalmente na garantia desse equilíbrio que se torna um fundador do desenho institucional do regime. Ao lado de Mário Soares (PS), Francisco de Sá Carneiro (PSD) e Álvaro Cunhal (PCP), Diogo Freitas do Amaral é, indiscutivelmente, um dos quatro fundadores da democracia portuguesa.
1976 Não à Constituição
A nova Constituição da República Portuguesa é aprovada com os votos de todos os partidos (PS, PPD, PCP, MDP/CDE e UDP), com exceção do CDS que, corajosamente, recusa assinar por baixo de um preâmbulo que consagra Portugal “a caminho do socialismo”.
1978 Acordo com o PS
Com a queda, no Parlamento, do I Governo Constitucional de Mário Soares, saído das primeiras legislativas (de 1976), o CDS aceita apoiar um segundo Governo socialista. O modelo não é o de uma coligação clássica, mas o de um acordo de incidência parlamentar, que preconiza a inclusão de alguns ministros indicados pelo CDS (o mais “graduado” dos quais é o secretário-geral Basílio Horta, no Comércio e Turismo). Freitas, porém, fica de fora. Divergências nas áreas da Saúde e da Agricultura provocarão, mais tarde, a rutura.
1979 Fazer História, com a AD
Com Sá Carneiro (PPD/PSD) e Gonçalo Ribeiro Teles (PPM), Freitas assina a formação da Aliança Democrtática (AD), que ganha as eleições intercalares, após a constituição e queda de dois governos de iniciativa presidencial, chefiados, sucessivamente, por Nobre da Costa (este nem chegou a ver o seu programa aprovado na AR) e Mota Pinto, e do final do prazo de um terceiro, constituído para preparar eleições, liderado por Maria de Lourdes Pintasilgo. A AD vence com maioria absoluta, reforçada nas eleições legislativas do ano seguinte.
1980 Camarate
A 4 de dezembro, no desastre do avião Cessna, em Camarate, morrem, entre outros passageiros e tripulantes, Francisco de Sá Carneiro, primeiro-ministro, e Adelino Amaro da Costa, ministro da Defesa Nacional. Freitas, vice-primeiro-ministro e ministro dos Negócios Estrangeiros, fica “sozinho” e assume, interinamente, o cargo de primeiro-ministro. Poucos dias depois, nas presidenciais, o candidato apoiado pela AD, general Soares Carneiro, perde, para Eanes, que conquista, assim o seu segundo mandato. Esfuma-se o sonho de Sá Carneiro, “um governo, um Presidente, uma maioria”. E um projeto político que se pretendia grandioso morre numa semana.
1982 Normalizar a Constituição
É o principal obreiro, por parte da AD, do projeto de revisão constitucional, a primeira revisão da Lei fundamental da República, normalizando-a ideologicamente, tornando-a menos socializante e pondo fim à delimitação dos setores (banca e seguros), o que viria a abrir espaço, mais tarde, à liberalização da economia. Neste sentido, no plano legislativo, foi, também, um dos fundadores do regime.
1986 Prá Frente, Portugal!
Candidato apoiado pelo PSD e pelo CDS – e por toda a direita e muitos independentes -, concorre às eleições presidenciais, protagonizando uma empolgante campanha com o slogan “Prá Frente, Portugal”. Nessa campanha à americana, já com Cavaco no poder, rapidamente conquista o estatuto de favorito. À esquerda, perfilam-se os rivais Salgado Zenha, Maria de Lourdes Pintasilgo e Mário Soares. Embora perto de ganhar, não conseguiu os 50% mais um voto, e seguiu para uma segunda volta, vindo a perder com Mário Soares (já apoiado por toda a esquerda, incluindo o relutante PCP) por uma unha negra: a diferença de eleitores entre um e outro mal encheria o velho Estádio da Luz…
1992 O fim de um ciclo
Vota favoravelmente o Tratado de Maastricht, contrariando a disciplina de voto da bancada do CDS – já liderado por Manuel Monteiro – mas de acordo com a sua consciência europeísta, e em linha com a sua contribuição para a adesão europeia. Afasta-se do partido e anuncia a retirada da política ativa. Mostra-se desiludido com a perda de influência eleitoral do partido (secado pelo sucesso de Cavaco Silva e do cavaquismo) e dececionado com a nova liderança eurocética de Manuel Monteiro, bem como com a viragem à direita da dupla Monteiro/Paulo Portas.
1995 O primeiro português num cargo de topo
A diplomacia do governo de Cavaco, com Durão Barroso com,o MNE, consegue fazer eleger Freitas do Amaral como presidente da Assembleia-Geral da ONU, em Nova Iorque, no primeiro grande cargo internacional ocupado por um político português. Fora, já, entre 1981 e 1983, presidente da União Europeia das Democracias Cristãs, onde dera um imprescindível contributo para a adesão de Portugal à então CEE (Comunidade Económica Europeia, futura União Europeia). Defende, contra a resistência americana, o multilateralismo e mantém diversas polémicas com a secretária de Estado norte-americana da administração Clinton, Madeleine Albrigh. Ao fim do seu ano de mandato, sai prestigiado internacionalmente.
2003 Contra a guerra do Iraque
Insurge-se contra a invasão do Iraque, por parte das forças anglo-americanas, e participa em manifestações e intervenções contra a guerra, ao lado de Mário Soares, de Francisco Louçã e de outros ativistas da esquerda. Escreve artigos, nomeadamente na VISÃO, e multiplica-se em declarações e entrevistas, denunciando a deriva bélica e “de extrema-direita” da administração americana liderada por George W. Bush.
2005 O polémico sim a José Sócrates
Aceita integrar, como independente, o I Governo de José Sócrates (um velho admirador de Freitas do Amaral), como Ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros, lugar já desempenhado no governo da AD, presidido por Sá Carneiro – também foi ministro da Defesa de Francisco Pinto Balsemão. Paulo Portas, à frente do CDS, manda retirar da parede da sede nacional, no Largo Adelino Amaro da Costa (ou do Caldas) o seu retrato, exposto ao lado dos outros presidentes do partido, e dá instruções para que o quadro seja entregue no Largo do Rato, sede nacional do PS. A rábula corre mal, expõe o CDS ao ridículo e, mais tarde, o retrato recuperará o seu lugar no Caldas. Freitas pedirá a demissão antes do final da legislatura, invocando razões de saúde: um problema de costas leva-o a longos períodos de inatividade e impossibilita-o de passar muitas horas a viajar de avião. Este é o seu último posto em funções executivas.
Foi professor catedrático, deputado, várias vezes ministro, vice-primeiro-ministro, primeiro-ministro interino, presidente da principal organização europeia de democracias cristãs e presidente da Assembleia-Geral da ONU. Sobretudo, foi fundador de um dos partidos estruturantes da democracia portuguesa e figura das mais influentes na adesão europeia e na normalização do regime democrático à maneira ocidental, através do seu contributo para a revisão da Constituição.
Na História, ocupará muito mais do que uma nota de rodapé. Morreu o último senador.