Vamos tentar perceber, devagarinho: o Governo considera que a aprovação, pelo Parlamento, da contagem do tempo total de serviço congelado, da carreira dos professores, torna o País ingovernável e pode justificar a demisão do Governo. Ora, os efeitos orçamentais desta decisão não serão sentidos na presente legislatura, pelo que se trata de uma matéria a ser enfrentada, não por este, mas pelo próximo Governo. Em coerência com o próprio pensamento de António Costa, há aqui um equívoco: o que ele quererá dizer é que o PS não deve apresentar listas às próximas eleições legislativas. Ou, se as apresentar, e ganhar, deve recusar formar Governo. Ou, se ganhar com maioria absoluta, reverter a decisão aprovada esta quinta-feira. Será isso?…
O que se pretende, com esta dramatização, é bem claro. Acontece todos os dias, nas relações amorosas em crise, quando as pesoas não têm coragem para pôr as cartas na mesa: o membro do casal descontente arranja um pretexto para a separação, que deite as culpas ao parceiro – e respira, aliviado. Se a geringonça acabar, “aculpa foi do PCP e do BE”. O presidente do PS, Carlos César, foi bem claro: “Está tudo nas mãos do PCP e, em especial, do Bloco de Esquerda”. Ou seja, apesar de tanto o PCP como o Bloco sempre terem defendido a reposição do tempo total, César acha que o voto de uns e de outros, esta quinta-feira, foi uma surpresa e uma traição ao entendimento formado no seio da geringonça. E que terão de ser eles a recuar, no momento da votação final. César não aponta as contradiões da direita, nesta questão, mas rasga as vestes perante “a irresponsabilidade dos partidos extremistas (sic)”. Onde isto já vai!…
A partir de agora, portanto, o PS ganha liberdade para criticar livremente PCP e, “em especial”, o Bloco (seu principal rival na disputa por um certo eleitorado esquerdista flutuante…), dizendo aos portugueses: “A geringonça .2 é praticamente impossível. Se não quiserem entregar o País à direita, votem maciçamente no PS.” O guião é extremamente simples, extremamente básico – resta saber se será extremamente eficaz.
E o que dizer dos campeões dos congelamentos de carreiras (PSD/CDS) e dos arautos do rigor orçamental contra as “políticas de bancarrota dos socialistas” (CDS/PSD)? Será que imaginam que ganham um único voto e que os professores, ou o eleitorado em geral, não lhes fareja, à légua, a hipocrisia da votação desta quinta-feira? Arriscam perder simpatias à direita sem as ganhar ao centro. O CDS mete os pés pelas mãos, ao dizer que nunca falou em salários, mas o que aprovou foi “o direito ao reconhecimento do tempo total”. E Rui Rio mete as mãos pelos pés, ao dizer que o impacto não vai sentir-se este ano, nem no outro e, nos seguintes, “só se o Governo quiser”. E acrescenta: “Eu não ando aqui a brincar com isto!”. Agora, fora de brincadeiras: importa-se de repetir?…
Mário Nogueira incha de contentamento. Afinal, ele acaba de provar que o sindicalismo tradicional ainda pede meças aos novos sindicatos desalinhados e agressivos, do tipo “motoristas de transportes de matérias perigosas”. Enquanto contempla a folha do calendário Pirelli na cabina do seu camião, o líder da Fenprof conversa com o espelho retrovisor: “Espelho meu, espelho meu, haverá sindicalista mais duro do que eu?”