Ao longo dos últimos anos, a função presidencial tem vindo a deteriorar-se. Sem poder executivo, o Presidente não sabe o que fazer a tanta legitimidade – mais de 50% dos votos dos eleitores). Em sucessivas eleições, as campanhas tornaram-se um vazio de ideias e a abstenção cresceu. Em tempos de crise e descrença, como no período de intervenção da troika, os portugueses perguntam-se: “Afinal, para que serve um Presidente?”
O Chefe do Estado impõe-se pelo peso da palavra. Mário Soares inventou, por isso, o conceito de “magistratura de influência”. Cavaco Silva estava sempre a referir-se à “palavra do Presidente”, talvez por que reparasse que a sua não era, propriamente, muito ouvida…. Mas, se o Presidente resolve usar esse único poder (pela positiva) que tem – os outros poderes existem, sobretudo, pela negativa, o poder do veto, o da dissolução do Parlamento… – é logo atacado por pretender encetar uma “deriva presidencialista”.
Na recente crise institucional – será mesmo uma crise?… – algumas vozes um tanto ou quanto histéricas alertaram contra o “perigo para a democracia” que representa Marcelo (Ação Socialista) ou, ignorando a solidez de algumas das maiores democracias do mundo, como a americana ou a francesa, guincham que o presidencialismo pode dar em ditadura (Porfírio Silva, dirigente do PS, no facebook). Alguns falam mesmo de uma “magistratura de ingerência” e sustentam que Marcelo está a tornar-se o mais interventivo dos presidentes eleitos da democracia, “exorbitando dos poderes constitucionais” (de novo, na Ação Socialista).
Pois bem: o poder de falar não é uma exorbitância. Como dizemos antes, é o único poder “pela positiva” que a legitimidade popular e a Constituição lhe conferem. Quanto à sua costela interventiva, estamos de acordo: é muito interventivo. Mas não foi Cavaco, pelos mesmos críticos, acusado de nada fazer, de alinhar com a troika e com Passos Coelho, não foram os seus discursos considerados irrelevantes, quando eram críticos, ou seguidistas, quando davam a mão ao Governo?, Ele era, então, o pior dos Presidentes. Quando Marcelo interroga, interpela, fiscaliza ou fala, é pior do que o pior. Vejamos então:
Ramalho Eanes interferiu tanto que, mesmo depois de perder muitos dos seus poderes, com a revisão constitucional de 1982, ainda arranjou maneira de inspirar um partido político a partir de Belém (o PRD).
Mário Soares interferiu tanto, que cavou a sepultura do cavaquismo, com frases alusivas ao direito à indignação, aos perigos da ditadura da maioria e com o Congresso Portugal, Que Futuro.
Jorge Sampaio interferiu tanto, que foi o único Presidente a despedir um primeiro-ministro que dispunha, ainda para mais, de maioria no Parlamento. Isto, para não falar da demissão de Armando Vara, exigida a António Guterres por Sampaio em termos muito mais duros do que os usados por Marcelo para sugerir a demissão de Constança Urbano de Sousa.
E Cavaco Silva, interferiu tanto, que deitou abaixo, num único discurso – o da posse, no segundo mandato – qualquer veleidade de José Sócrates em continuar a governar, isto já depois de ter tentado uma coligação alargada na sequência da crise do irrevogável.
Marcelo… bem, Marcelo disse, a propósito dos incêndios e do que era necessário fazer, umas coisas de senso comum, que podiam ser – e foram, – subscritas pela generalidade dos seus concidadãos. Coisas que parecem ter chocado umas hiper-sensíveis fontes anónimas governamentais. É, portanto, um ditador. Mas, para a direita revanchista que o crucificava por ter traído a “sua base de apoio” (o que quer que isso seja), agora, já é o maior. Deviam era ter vergonha…
Quando Marcelo fez a sua campanha eleitoral, o que se viu foi, também, um vazio de ideias. Vagamente, falou em “afetos” o que parecia ser um conceito algo abstruso (embora, como veremos adiante, isso fosse todo ele um programa político). A sua postura surpreendente foi confirmada no exercício do seu mandato: contra todos os desejos mais profundos da sua área ideológica de origem, a direita, ele tornou-se um colaborador ativo do Governo e de António Costa. Ninguém, no seu perfeito juízo, a não ser por sectarismo partidário, o devia agora acusar de querer favorecer o PSD: com a sua lealdade ao Governo, adquiriu autoridade moral para puxar as orelhas no momento em que o Governo fez asneira. Será que tem um projeto de poder pessoal? É possível. Mas, comparativamente com outros presidentes, nada fez de mais. O problema é ser quem é: Marcelo Rebelo de Sousa, o infant térrible.
Mas há uma crítica que pode e deve fazer-se-lhe. A de estar sempre do lado que parece mais popular: com o Governo quando este está em alta, contra o Governo quando este está em baixa. Já um Presidente da República da democracia, Francisco da Costa Gomes, tinha sido alcunhado de “Chico Cortiça”, por estar sempre ao de cima, a boiar nas águas dos vencedores… Este ziguezague, porém, não é exclusivo deste Presidente. Todos procuraram estabelecer um link direto com a população, por cima dos partidos e dos governos, em especial, quando os governos começam a “cheirar mal dos pés”, o que não pode deixar de ser um sinal de alarme para António Costa…
A história dos afetos tem tudo a ver com isto. Não foi propriamente pelos bonitos olhos dos portugueses que o PR montou escritório na rua, fazendo o expediente do despacho à base de selfies. A estratégia dos afetos é puro cálculo político. A aproximação aos portugueses fez deles o seu escudo humano. Numa palavra, está com as costas quentes, junto do País. E a linha de confronto de António Costa face a Marcelo, a ser seguida, será uma jogada de alto risco para o Governo e para o próprio Costa. A melhor tática seria “comer e calar”, até a tempestade passar. Já percebemos que o Presidente está bem ciente dos seus poderes e disposto a usá-los. Ou o Governo aprende a viver com isto ou a corda rebentará do seu lado.
Repare-se bem: se não fosse o capital político, junto do País, ganho ayravés dos famosos afetos, a palavra de Marcelo teria tido o mesmo peso que agora teve? Já imaginaram se fosse Cavaco – ou mesmo Sampaio! – a ter este tipo de intervenção?… Aliás, tiveram. Aliás, de formas até muito mais duras. E – se excetuarmos o tal discurso de posse anteriormente referido – ninguém lhes ligou nenhuma. Ou seja, Marcelo meteu na cabeça que há de fazer com que o cargo de Presidente seja importante outra vez e, agora, confirmou-se que está a ter sucesso nesse desiderato.
Se calhar, tudo graças a uma chachada a que chamou “os afetos”. Quem diria?…