Escrevo esta quinta-feira, 22 de outubro, antes de almoço, atascado em cafés. O País vive num permanente coffee break entre reuniões. Algumas são inconclusivas, outras produtivas. Nuns casos estão a correr muito bem, noutros são de faz de conta. Cavaco Silva já recebeu toda a gente e ainda não se decidiu – provavelmente, também está em pausa para café. Todos, líderes partidários, Governo em gestão, Presidente da República, parecem ter todo o tempo do mundo. E, no entanto, há quem diga que a discussão, no Parlamento, do programa de governo do partido vencedor das eleições seria «uma perda de tempo».
Quem o diz são António Costa, líder do PS, e os seus homólogos do PCP e BE, Jerónimo de Sousa e Catarina Martins. Porque asseguram que o Governo da coligação de direita, minoritário, não passará no Parlamento. E porque garantem ao Presidente, e ao País, um Governo alternativo, de esquerda, que corresponda ao sentimento maioritário do eleitorado, que votou contra a austeridade.
Numa análise simples aos programas partidários, verifica-se que todos os votos foram contra a austeridade. Sim, pasme-se: a coligação de direita também prometeu o alívio e um (embora prudente) desaperto de cinto. Independentemente da desconfiança que possamos ter sobre as suas boas intenções, e temos razões para desconfiar. Quer das promessas, quer das omissões, quer das medidas disfarçadas, quer das intenções escondidas. Nessa matéria, o PS não é inocente: nem pelo seu passado no Governo, nem pelo atual programa, como se viu, quando Costa se engasgou, instado a explicar onde faria os cortes nas prestações não contributivas… Mas retomando: numa análise comparada – como, aliás, a VISÃO, na sua edição em papel, demonstrou atempadamente, antes mesmo de a campanha começar – constata-se que a principal diferença entre o que propunha o PS e o que propunha a coligação era uma diferença de ritmo. Resumindo, para sermos claros, bem espremidos, os programas do (antigo) arco da governação eram almas gémeas, diferindo, no que pode ser substancial, apenas no que cada um propunha para a reforma da segurança social. Mais uma vez, o PS estava, programaticamente, muito mais próximo do PSD do que dos partidos à sua esquerda. E não apenas nas questões de fundo e de regime, incluindo os acordos internacionais, a Europa, o euro e a NATO. Também nas medidas para uma legislatura. Não estou a dizer se fez bem ou mal: é uma constatação.
Visto deste prisma, dir-se-ia que a maioiria do eleitorado votou em várias esquerdas diferentes (se tivermos a boa vontade de considerar o PS como firme representante da esquerda). Noutra interpretação mais fiel, o eleitorado, o que votou, foi ao centro. E dir-se-ia que estaria mais correta a interpretação de que os portugueses deram recado para que continuasse a mesma política mas, agora, de rosto humano. Dando mandato à coligação de direita para governar, mas, agora, integrando as propostas ligeiramente mais preocupadas com o estado social e a recuperação dos rendimentos de um reforçado PS, fiel da balança e nomeado uma espécie de «concelho fiscal» da governação.
É por isso que tanto se discute, mesmo dentro do PS, a legitimidade de um governo feito à esquerda. Tudo seria diferente se António Costa tivesse ficado em 1.º lugar. Repare-se bem: não havia, no boletim de voto, qualquer coligação de esquerda. Dir-se-á: em 2011 também não havia qualquer coligação de direita – e ela fez-se, posteriormente, e governou. A diferença, porém, é que o PSD, ficando em 1.º lugar, tinha um mandato popular para constituir governo. Disso, fazia parte escolher como e com quem. É totalmente diferente fazer o mesmo tendo ficado em 2.º lugar. Aliás, se Costa tivesse ficado em 1.º, jamais contaria com esta boa vontade da CDU ou do Bloco. Que o diga José Sócrates em 2009. Bloco e CDU sabem, e sabem que Costa sabe, que, se chegar a primeiro-ministro, a eles o deve. E não aos votos.
António Costa, é verdade, está a avisar, há mais de um ano e meio, que o arco da governação acabou. E que os partidos à esquerda seriam, mais tarde ou mais cedo, chamados a «assumir as suas responsabilidades». Entenda-se, a fazerem parte de soluções governativas e a não se limitarem ao «arco do protesto». Pensa assim, não pelos bonitos olhos de Jerónimo ou Catarina, mas porque sabe que, entrando no arco governativo, PCP e Bloco perdem a sua maior força que é a de se «oporem». E este é o melhor caminho para que o PS seja, finalmente, hegemónico na esquerda. E é neste abraço de urso que ele está a pensar, neste momento. Seja como fôr, quem votou no PS, sabia que essa era uma possibilidade. O PS, porém, não ganhou. E nem sabemos se não ganhou, precisamente, porque essa era uma possibilidade!
Se António Costa tivesse ganho, seria normal, legítimo e louvável que, como Passos Coelho fez há quatro anos, promovesse todos os esforços necessários para constituir um Governo estável. Ninguém lhe apontaria nada por procurar sócios à esquerda. Aliás, ele tinha avisado. E porque é que isto é tão importante? Porque, embora os votos sejam em deputados e os governos saiam dos parlamentos, a verdade prática é que os eleitores votam «na pessoa». O próprio PS admitiu isso quando, nas suas primárias, escolheu um, vai entre aspas, «candidato a primeiro-ministro»! Eleição que, constitucionalmente, nem sequer existe! E porque é que o PS fez isto? Porque interiorizou que, nas legislativas, também se elegem primeiros-ministros…
Não tenho nada contra a entrada de comunistas e bloquistas no Governo. Lembro-me do projeto de Álvaro Cunhal de impôr uma ditadura do proletariado em Portugal, e de como Mário Soares, os militares moderados e, sobretudo, os eleitores o impediram, mas também me lembro da reciclagem que o PCP fez desse projeto. Não há nenhuma razão para ter medo. Mais, ambas as forças, CDU e Bloco, têm uma energia mais criativa e trabalhadora do que os que nos governaram nos últimos 40 anos. Tem-se visto isso nas comissões de inquérito do Parlamento e, no caso do PCP, também nas autarquias, geralmente muito bem geridas e sem casos de corrupção. Portanto, não é por aí. O problema, como diria o outro, «é a democracia, estúpido!».
E, por estes dias, uma dúvida me assalta: entre o temor histérico da direita e o triunfalismo arrogante da esquerda, como estarão os sentimentos de quem votou PS?…