Cavaco Silva é um político contrafeito. A sua frágil cultura democrática desenvolveu-se em idade adulta, já casado e professor. Nunca antes tinha ouvido falar em política ou, se ouviu, foi para se desviar dela. Imaginamos os seus progenitores, que, com sacrifício, o mandaram estudar em Lisboa, a aconselhá-lo a afastar-se de “complicações”. O seu melhor trunfo é, assim, o seu maior problema: ele é demasiado parecido com o português médio da sua geração.
Foi a sua sinceridade desarmante inicial que, nos primeiros debates parlamentares da sua carreira, como ministro das Finanças de Sá Carneiro, desorientou políticos experimentados. Mal vestido e sem currículo antifascista, vinha dar-se ares de professor a ralhar com deputados respeitáveis como se fossem alunos cábulas. Desse tempo guarda o eleitorado a imagem do galarote combativo, frente aos cabelos brancos de Álvaro Cunhal, e atrevido, perante as bochechas já venerandas de Mário Soares. Essa irreverência (que Soares classificou como arrivismo) identificou-o com o ponto de vista popular, completamente “anticlerical”, de quem encara os políticos como bonzos instalados. Como Salazar, ele vinha das berças. Como Salazar, representava o antipolítico (pele que tentou sempre manter). Como Salazar, impacientava-se com o debate, o contraditório e o jogo democrático. Como Salazar, convivia mal com a crítica, que tomava como agravo pessoal. Como Salazar, ele tinha uma missão. E, como Salazar, teve um apoio popular imediato. Por detrás dessa capa, medrava uma estrutura cada vez mais profissional, que incluía conselheiros de imagem, acólitos e oportunistas. Salazar também os deixou medrar, porque o Poder não se mantém sem essa concessão. Trinta anos depois, Cavaco Silva é o político mais duradouro no ativo. Contudo, a sua boa estrela parece ter empalidecido.
O problema de ser demasiado parecido com o português médio tornou-se o seu calvário. Cavaco não intervém, não influi, não decide. Ele próprio se exaspera com os limites da sua função presidencial, confundindo-os com a sua própria inadaptação ao cargo. Um político teórico e de “casta” consegue exercer uma magistratura de influência. Mas um homem comum, que só conhece a ação, esvazia-se em Belém.
A sua tentativa para impor em Portugal uma cultura de compromisso (tão precisa num país em profunda crise, também, de identidade) é a ideia certa vinda do homem errado. O seu alerta para o risco de implosão do sistema partidário é a lucidez vinda de quem os portugueses já só esperam ideias turvas. Se ter razão antes do tempo é mau, ter razão depois do tempo é ainda pior. Cavaco precisa de um golpe de asa, em 2015, ano de legislativas. Estabilizar o regime, evitar um novo resgate, sentar os políticos à mesa, ter a coragem de fazer ruturas e a habilidade de estender pontes, mobilizar os portugueses para um objetivo qualquer. Mas se a situação política se deteriorar por via de uma abstenção insuportável ou uma fragmentação eleitoral que dê força a derivas populistas e torne o País ingovernável, Cavaco, e não o sistema, implodirá. E, então, citando uma das frases que o celebrizou, dificilmente terminará o seu mandato com dignidade.