No momento em que escrevo, a greve dos motoristas de matérias perigosas já causou transtorno, designadamente sob a forma de notícias sobre o facto de a greve dos motoristas de matérias perigosas ainda não ter causado transtorno.
É possível que, quando este número da VISÃO for publicado, o País já esteja em pleno apocalipse energético. É possível, aliás, que este número da VISÃO não chegue a ser publicado, por falta de combustível necessário para escrever, imprimir e distribuir a revista – e, nesse caso, o leitor não conseguirá ler este texto. Aí, sim, não tenho dúvidas de que o governo enfrentará protestos sangrentos. Mas até chegarmos a essa situação de rotura, a esse ponto extremo de barbárie em que o público se vê privado das minhas baboseiras semanais, por enquanto não se passa nada. Ou melhor, já há gente que sofre, e muito. Os organizadores de festivais do caracol, feiras do fumeiro e festas do marisco, que nesta altura do ano costumam receber a visita de diligentes jornalistas estagiários, perdem a oportunidade de preencher horas de emissão dedicada aos seus certames. Quem diz certames diz iniciativas. Ou mostras. Esta costuma ser a época dos certames, das iniciativas e das mostras. E dos eventos.
Por falta de assunto, a comunicação social dedica-lhes bastante tempo de antena. Este ano, no entanto, a greve dos motoristas obscurece tudo o resto. Primeiro, porque é mais importante do que o festival do caracol; segundo, porque em princípio ninguém vai ter gasolina para ir ao festival do caracol. O problema é que, como já disse, ainda não aconteceu nada de especial. O que significa que as peças jornalísticas que estão a substituir as reportagens sobre o festival do caracol não valem um caracol. Em vez de observações concretas sobre o caracol (também ele concreto), especulações sobre o que poderá acontecer se os abastecimentos se fizerem a passo de caracol. Muito menos interessante. Mesmo que a greve dos motoristas paralise todo o País, esta cobertura intensiva dos postos de abastecimento desertos não parece uma estratégia acertada: impedidas de sair à rua por falta de gasolina, as pessoas ficam em casa a ver que as ruas estão vazias por falta de gasolina. Dá vontade de ir para longe. Infelizmente, não há gasolina.
(Crónica publicada na VISÃO 1380 de 15 de agosto)