Só os mais distraídos se surpreenderam com o que se passou em Brasília. Só os mais cínicos e coniventes continuam a desculpar o que aconteceu no Capitólio. Estes são os corolários do exercício de poder de autocratas travestidos de democratas, negacionistas da Ciência e das alterações climáticas, nacionalistas agressivos de religiosidade instrumental e fanática, conspiracionistas de golpes e de violência extrema, egocêntricos montados em teias mafiosas, sem um pingo de humanismo. Aqueles que condescenderam, acomodaram ou se calaram, em nome do cinismo tático destes tempos de trincheira política, deviam ter vergonha dos contorcionismos semânticos adotados nos últimos dias, na esperança de que nos esqueçamos dos seus nomes, do que escreveram, do que apregoaram e das lealdades demonstradas.
Desde o resultado das eleições, em final de outubro, que as ameaças corriam nas veias e nas bocas do fanatismo bolsonarista, apesar do cinismo do criador, desaparecido em parte incerta até dar à costa na Flórida, refúgio da sua musa inspiradora. Também desde as eleições que as famosas redes sociais, de que o Brasil é campeão mundial de utilização, promoveram milhões de apelos à mobilização popular, com incentivos à rebelião junto dos órgãos de soberania, à reversão dos resultados e do Presidente indigitado, com suficiente choque e pavor para o mundo ver. O resto foi colher a fruta podre do sistema securitário: Forças Armadas e policiais divididas no objeto das suas lealdades, com chefias demasiado comprometidas com Bolsonaro, quer na secretaria da segurança pública quer na governação do distrito federal. O resultado está à vista: a tentativa de replicar a invasão do Capitólio, que faz agora dois anos, embora mais patusca nos meios, objetivos e na leitura do contexto.