As democracias não sobrevivem com níveis incomportáveis de polarização. EUA e Brasil têm provado o amargo sabor dessa convivência venenosa entre hemisférios opostos, parte dele não reconhecendo a legitimidade do outro. O caso norte-americano, do qual já conhecemos os efeitos da derrota do promotor do ódio e da mentira, mostrou ao mundo que uma eleição perdida está longe de significar o fim da linha. Aliás, outra começou de imediato. O ataque ao Capitólio, essa tentativa de golpe de Estado para evitar a oficialização do resultado, foi a primeira expressão do alcance do culto trumpista, com apoio expresso do então presidente. Há dias, continuando esse culto por outros meios, um homem, totalmente alinhado com as mesmas teses conspirativas, entrou em casa da líder da Câmara dos Representantes, Nancy Pelosi, gritando o seu nome, para a matar, ferindo o seu marido com um martelo.
Talvez o maior sinal da degenerescência que atinge uma democracia esteja na sua tolerância à incitação à violência, expressa por um responsável político. Trump já tinha avisado ao que vinha na campanha de 2016, quando encorajou à prisão de Hillary Clinton em comícios exuberantes. A turba, então, já salivava por sangue, e por cá não foram poucas as vozes a condescender com os métodos e a afirmar não vir dali mal ao mundo. Alguns deles, quatro anos depois desses sinais iniciais e apesar do mal feito às instituições norte-americanas e à convivência democrática ao longo do mandato de Trump, mantiveram-se seus defensores, abrindo mesmo publicamente a tese da fraude eleitoral, mas calando-se na condenação do ataque ao Capitólio. Apesar de coniventes com todo o ambiente tóxico trumpista, inspirador de partidos em Portugal, continuam hipocritamente a apregoar à boca cheia a “democracia” e a “liberdade” em páginas de jornais, programas de televisão ou em salas de aula em universidades, como se não fossem cúmplices da sua destruição.