Aos seis meses de guerra, procurei nesta coluna arrumar o conflito em três fases. A primeira, entre fevereiro e março, viu Moscovo operar uma guerra-relâmpago sobre Kiev, na tentativa de surpreender o mundo e de fazer da Ucrânia uma segunda Bielorrússia. Esta missão falhou em toda a linha. A segunda, entre abril e maio, assistiu a uma dispersão de ataques russos no Nordeste, Sudeste e na orla sul ucraniana, entre eles muitos sobre alvos civis para fragmentar a resistência e dificultar o apoio militar vindo do exterior. Esta missão não teve continuidade, quer pela capacidade anímica ucraniana quer pela condenação internacional dos crimes de guerra russos. A terceira, entre junho e agosto, assistiu à concentração das operações no Donbass e na região do mar de Azov e do mar Negro, com bloqueios portuários e a tentativa de controlar a região de Odessa. Esta fase perdura, com avanços e recuos, desgaste nos dois lados, mas foi de certa forma interrompida por um facto importante em meados de agosto e que iniciou a quarta fase da guerra: um conjunto de ataques cirúrgicos do Exército ucraniano a bases militares e logísticas russas na Crimeia. Esta ação expôs uma maior sofisticação militar ucraniana, tal como outras condições políticas para se passar de uma etapa de resistência para uma contraofensiva mais ambiciosa. Os ataques na Crimeia disseram a Moscovo aquilo que Zelensky reforçou ao país: só daremos por terminada esta guerra quando reconquistarmos tudo aquilo que nos pertence, revertendo o ciclo de ocupação iniciado na Crimeia, em 2014.
Com mais meios militares terrestres e antiaéreos finalmente nas mãos, disponibilizados pelo imenso pacote aprovado pelos EUA, Reino Unido e alguns países da UE (16 mil milhões de dólares no total), Kiev reconquistou mais território na região de Kharkiv em 48 horas do que a Rússia nos últimos quatro meses. O moral da cadeia de comando ucraniana, envolto numa missão existencial que mobilizou o país, contrasta com uma disfuncional cadeia de operações militares russa, fraqueza na recolha de informações, desvalorização do adversário e na recusa de Putin numa mobilização geral, talvez com receio das dissidências que esta provocaria na sociedade russa. É por isso que o aparelho de comunicação do Kremlin continua a utilizar um ridículo léxico paralelo para ilustrar tanto falhanço em tão pouco tempo, como reagrupar em vez de retirar, a clássica operação especial em vez de invasão ou mesmo os célebres homens verdes em vez de tropas russas, estacionadas no Donbass desde 2014. Acontece que a realidade é normalmente implacável com a ficção, e é preciso recordar que nestes seis meses a Rússia teve tantos militares mortos e feridos como nos dez anos de guerra que a União Soviética travou no Afeganistão. E todos sabemos como as coisas terminaram para o Kremlin.