Não sei se partilham a sensação, mas sempre que surge a hipótese de Mario Draghi passar merecidamente à reforma, dá-me um arrepio na espinha. Um país fundamental à política europeia desperdiçar a credibilidade de um político sensato e corajoso, neste contexto absolutamente neurótico de guerra, inflação, bloqueios alimentares, alterações climáticas e nacionalismos, é atirar borda fora um bem cada vez mais escasso. Desperdiçar a sua disponibilidade para aguentar um complexo governo de unidade nacional, com fascistas à espreita enquanto lideram sondagens, é um monumental tiro no pé, só explicado pela tradicional propensão do sistema partidário italiano para a autofagia das crises inusitadas. De qualquer forma, num contexto histórico como o que vivemos, talvez se esperasse outra parcimónia. Pura ingenuidade. O Movimento 5 Estrelas, fiel à natureza guerrilheira que agrupou nas margens do sistema, apesar de ser o maior partido na Câmara dos Deputados, tem caído dramaticamente nas sondagens a um ano das legislativas. É o instinto de sobrevivência que o leva a partir ao meio entre os que, como o ex-primeiro-ministro Conte, queriam apressar a acomodação da passada russa na Ucrânia, na esperança de que o apaziguamento baixasse o custo de vida na manhã seguinte e esfriasse outras cavalgadas do Kremlin a leste; e os que, como o ministro dos Negócios Estrangeiros, Di Maio, permaneceram leais a Draghi, apoiando os esforços da Ucrânia e as decisões em Bruxelas. Di Maio saiu, formando um novo partido; Conte ficou, partindo tudo. O fator russo esteve na origem da fratura italiana e do abanão a Draghi. Debaixo de apelos nacionais para se manter no cargo, uma sua reincarnação recentra-o no sistema, fortalece o seu poder, e tranquiliza a Europa. Já não seria pouco.
Entretanto, nos EUA, continuam as audições sobre a invasão de 2021 ao Capitólio. Já toda a gente percebeu que o ex-Presidente Trump foi política e moralmente responsável pelo que aconteceu: uma tentativa de golpe constitucional para impedir a oficialização dos resultados da eleição presidencial. Felizmente Mike Pence esteve à altura da história e as forças policiais tiveram a coragem para travar um banho de sangue. O mal estava feito: a conjugação das teses de fraude eleitoral, apregoadas ainda a campanha ia no adro, com incitações à violência contra adversários políticos que fizeram escola desde as presidenciais de 2016, com o não reconhecimento da vitória de Biden, e com o paternalismo continuado junto de grupos de extrema-direita espalhados pelo país, incendiaram o contexto até à violência no Congresso. O que aconteceu há um ano e meio é típico de uma autocracia, não de uma democracia madura, que quer ser um modelo de virtudes no sistema internacional. O Watergate ao pé disto é uma nota de rodapé. Longe dessa imensidão de virtudes, sob concorrência crescente de terceiros na influência internacional, os EUA precisam urgentemente que a justiça funcione sem medos, sem táticas, sem cálculos. Ter esperado tanto tempo para iniciar audições e inquéritos ao que se passou já indicia um condicionamento por contexto, além de dar todo o tempo do mundo a Trump para se recompor e reorganizar o rolo compressor de mentiras e teses conspirativas. De qualquer forma, em democracia nunca é tarde para defender o Estado de direito. É de sobrevivência democrática que estamos a falar.