Nos últimos anos, tem-se escrito rios de tinta sobre o “fim da ordem internacional liberal”, com argumentos que vão desde o “declínio da hegemonia americana” à “incapacidade de fazer valer os valores democráticos” no choque com as autocracias, passando pelo inexorável “beco disfuncional em que mergulharam as organizações internacionais” fundadas no pós-guerra. Exemplos para cada um destes diagnósticos não faltam, mas talvez seja avisado olhar com algum rigor para o ritmo dessa suposta erosão. A minha leitura é que esta, a existir, é mais lenta do que os prognósticos faziam crer. Lenta e resistente. Aliás, a ânsia analítica com que muitos querem enterrar definitivamente uma era parece conduzir a um de dois raciocínios: ou nunca gostaram verdadeiramente dela ou querem forçar alguns sinais ainda errantes num argumentário apocalíptico. O corolário de ambas é o mesmo: um duplo favor monumental a todos esses nacionalistas encartados que, beneficiando dessa mesma ordem internacional, cospem diariamente no prato em que comem (Orbán é o hipócrita de serviço); mas também a todos os líderes de potências revisionistas e agressivas que desprezam as liberdades e a democracia e encantam cada vez mais parceiros por esse mundo fora, com milhões, canhões e outros apertões. Por outras palavras, a ordem internacional liberal está sob pressão interna e externa, há sinais de erosão preocupantes, mas é cedo para lhe decretar a morte e apontar uma substituta.
Digo isto por três razões, para responder precisamente às três premissas com que comecei o artigo. Primeiro, o declínio americano, sendo mais relativo do que absoluto, carece de confirmação. Nenhuma outra grande potência tem uma moeda tão poderosa, tantas alianças geograficamente dispersas, tanta projeção estacionada de poder militar dissuasor, tanta influência nos oceanos, nas organizações internacionais ou nos domínios educativo e cultural. Podemos dizer que esta e aquela administração usam este ou aquele poder com maior ou menor ambição, mas ele está lá. Podemos dizer que tem competidores externos com outra força equilibradora, mas em grande parte dos fatores de poder não existe ainda equilíbrio. E podemos dizer que a sua democracia está doente, ameaçada pelo trumpismo, o que torna imprevisível a evolução do seu sistema. Tudo isto é verdade. Mas não implica o fim de uma ordem internacional por si liderada e moldada nas últimas décadas. O que devíamos estar a discutir era como preservar o que foi bem feito e corrigir a tempo as suas muitas perversidades, não buscar uma aceleração do seu ocaso. Acreditem que não vamos gostar da alternativa mais expressiva.