No artigo anterior, abordei a eutanásia numa perspetiva histórica e filosófica. Nesta segunda e última parte do texto, pretendo concluir a discussão deste instigante e polémico tema, enfatizando as perspetivas antropológica e religiosa.
No contexto dos trabalhos de pesquisa e das variadas etnografias que realizei pelo mundo – em distintas realidades sociais e culturais, como a Bolívia, Índia, Camboja, Brasil, entre outros -, verifiquei que em algumas sociedades indígenas era (e ainda é) prática corrente antecipar a morte de um determinado indivíduo – sacrificam os mais idosos, os enfermos e as crianças com deficiências físicas – ato que denominamos na civilização ocidental de eutanásia. Estas práticas, na lógica dos Direitos Humanos (ocidentalizados), e segundo o ordenamento jurídico, são consideradas como crime.
Embora sem espaço neste texto para aprofundar esta discussão, quando falamos de Direitos Humanos é pertinente lembrar aqui a eterna dicotomia entre o Universalismo X Relativismo cultural – é possível conciliar? O cerne da questão é que os Direitos Humanos têm um carácter universalista, possuem um ‘ethos’ universal, ou seja, foram estabelecidos para serem aplicados por e para todos os povos, nações, Estados, pois o elemento central é o ser humano. Mas há aqui um problema ou um contraponto, digamos assim: o mundo é, na sua essência, culturalmente muito diverso. Assim como acontece com o conceito de Democracia, as sociedades, que possuem culturas e religiões diferentes, não partilham os mesmos valores, éticos e morais; além disso, estes valores mudam com o tempo, ou seja, dependem do contexto histórico. É aqui que entra a questão do relativismo cultural, tema privilegiado da Antropologia. A pergunta central é: todas as práticas culturais (religiosas, morais e éticas), relativas aos diferentes contextos sociais, devem ser preservadas? Não podemos esquecer que determinadas práticas culturais, como a eutanásia, por exemplo, podem entrar em conflito com os Direitos Humanos.
Dando ainda ‘palco’ à Antropologia, para reforçar essa diversidade de atitudes perante à morte, a literatura antropológica traz-nos uma pequena e interessante reflexão dos Dinka, um povo que vive no Alto Nilo. É na verdade parte de um mito de origem, que é mais ou menos assim:
“No dia em que Deus criou todas as coisas, Criou o Sol.
E o Sol nasce, morre e regressa de novo.
Criou a Lua.
E a Lua nasce, morre e regressa de novo.
Criou as estrelas.
E as estrelas nascem, morrem e regressam de novo.
Criou o Homem.
E o Homem surge, morre e não regressa mais”.
Dando destaque agora à perspetiva religiosa, todas as religiões do mundo, seja animista, politeísta ou monoteísta, consideram a vida como sendo um dom divino e/ou de um espírito superior. Por exemplo, no contexto das religiões abraâmicas monoteístas – judaísmo, cristianismo e islamismo – a vida humana é uma dádiva divina; é sagrada e inviolável. Por esta razão, somente Jafé/Deus/Alá tem o direito de tirar a vida de alguém. Portanto, todas essas religiões são, naturalmente, contra a eutanásia/suicídio assistido.
Vejamos o cristianismo, sistema religioso que, na sua vertente católica, teve um papel crucial na construção cultural e identitária da sociedade portuguesa. Na doutrina cristã (católica e protestante), o corpo, sendo matéria, é desvalorizado. A morte é vista como a degeneração do corpo; é, portanto, um fenómeno biológico, físico. Usando a morte de Cristo como referência, como modelo a seguir, valoriza o sofrimento. A dor, sentida no corpo, é um meio de se alcançar a redenção dos pecados (do corpo) cometidos em vida. No sofrimento, o indivíduo se irmana a Cristo. Por isso, no cristianismo, a importância centra-se na alma, liberta do corpo pela morte. A ideia é que a morte conduzirá o espírito do indivíduo a Deus.
Para concluir (e talvez não), é pertinente (re)lembrar que, do ponto de vista filosófico e antropológico, a dicotomia vida (Eros) e morte (Thanatos) é uma das mais complexas e profundas inquietações da humanidade. Para entender melhor esta angústia, sugiro a leitura da interessante análise do filósofo, sociológico e psicanalista alemão Herbert Marcuse (1898-1979) sobre a condição humana, em Eros e Civilização (1955), onde faz uma revisão crítica da conhecida obra de Freud O mal-estar da civilização (1930), outra obra obrigatória.
Como vimos, há várias opiniões sobre a eutanásia e todas reivindicam a razão, a verdade. Mas nesta discussão, que é teórica e ética, as pessoas esquecem o que é mais importante: a opinião daquele que sofre e que anseia pela antecipação da (sua) morte.
Uma premissa para vocês leitores refletirem (e reagirem): quem tem o direito de decidir pela continuidade do sofrimento do outro? Por outro lado, quem tem o direito de antecipar a morte do outro, mesmo daquele que sofre?
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