A história começa assim: Richard Horton, editor-chefe da prestigiada revista médica britânica The Lancet, em setembro do ano passado, publicou o texto “Offline: COVID-19 is not a pandemic”, que teve uma enorme repercussão. Neste artigo, Horton recuperou o esquecido conceito de sindemia, criado pelo norte-americano Merrill Singer, nos anos de 1990, no contexto da Antropologia médica, uma disciplina que visa analisar/estudar, interdisciplinarmente, o binómio saúde-doença nas suas múltiplas dimensões – biológica, social, cultural e ecológica/ambiental.
Em colaboração com outros pesquisadores (nomeadamente Emily Mendenhall), Singer criou o conceito de sindemia. Mas o que vem a ser sindemia? Singer defende a premissa de que os fatores sociais, económicos e ambientais promovem e/ou potenciam os efeitos negativos de uma determinada doença (do foro biológico). É um modelo explicativo que veio pôr em causa, no contexto das sociedades modernas, a ultrapassada separação epistemológica da dicotomia natureza-cultura e biológico-social/cultural; separação esta que as sociedades indígenas (denominadas primitivas) sabiamente nunca fizeram.
Merryll Singer, ao estudar doenças com alta persistência e impacto médico-social, como o HIV-SIDA, obesidade mórbida, diabetes, uso de drogas, entre outras, percebeu a vantagem de considerá-las como uma trama ou rede entretecida de tal forma que é impossível isolar um único fator causador da doença. Por isso, é fulcral valorizar, nos estudos das doenças, as múltiplas inter-relações estabelecidas entre os domínios biológicos, genéticos, epidemiológicos, culturais, sociais, históricos e psicológicos.
No caso da Covid-19, devemos chamar pandemia ou sindemia? Denomina-se pandemia quando uma doença infeciosa se dissemina rapidamente, em grande escala geográfica, atingindo, ao mesmo tempo, um elevado número de pessoas, regiões e países. Por sua vez, existe uma situação de sindemia quando bactérias e vírus, após adaptações várias, entram em ação nas sociedades humanas, interagindo com um número indeterminado de fatores, tais como: étnico-racial; genético; sexo-gênero; desigualdade social; política pública; espaço geográfico; arquitetura citadina; religião; ciência (e a sua negação); vacinas, investimento público; ‘fake-news’; negacionismo, etc. Portanto, a perspetiva sindémica ajuda-nos a entender melhor a tessitura multidimensional que compõe o processo de saúde e de adoecimento, individual e coletivo.
Em outras palavras, as doenças são fenómenos biológico-genéticos, mas também sociais-culturais. Os vírus invadem os corpos humanos, entram e circulam nos mercados, casas, ruas, aeroportos, acelerando a sua circulação mundial e consequente mutações. A Covid-19 deu-nos uma dura e dolorosa lição. O vírus – vindo da natureza ou de um laboratório – pode viver e tornar-se mais letal e contagiante se estiver em sinergia com a pobreza, com a falta de saneamento básico, falta de investimento público na saúde e ausência de ações económicas niveladoras das desigualdades sociais.
É verdade que o vírus pode contaminar qualquer pessoa, independentemente da pertença étnico-racial, e se é rica ou pobre. No entanto, as condições socioeconómicas determinam o sucesso ou o fracasso no tratamento e consequente sobrevivência ou não do indivíduo. Estudos nos Estados Unidos comprovam que, embora a contaminação seja transversal a todos os segmentos sociais e económicos da sociedade, a maior percentagem de vítimas mortais da Covid são pessoas pobres. Pesquisas brasileiras apontam, por exemplo, que pedreiros, trabalhadoras domésticas e motoristas de transportes públicos são os mais afetados, apresentando altos índices de mortalidade, de internação hospitalar e sequelas, em comparação com as demais profissões. Portanto, para um melhor entendimento da doença, devemos valorizar a complexa relação entre as condições biomédicas e as condições socioeconómicas dos indivíduos.
As enfermidades/doenças que circulam num mundo globalizado, causadoras de enormes impactos na saúde e na economia, como é o caso do Covid-19, podem ser melhor compreendidas e resolvidas se vistas e tratadas como uma sindemia e não como uma ‘mera’ pandemia. Somente assim seremos capazes de (re)agir melhor na prevenção e tratamento desta terrível doença.
No momento atual, enfrentamos uma convergência explosiva de fatores, naturais e humanos integrados: destruição do meio ambiente, principalmente na Amazónia, explosão da desigualdade social, caos financeiro, erosão da democracia, expansão da pós-verdade e de informações falsas. Para enfrentar esses desafios, é preciso um aparato teórico capaz de nos trazer uma perspetiva mais integrada de compreensão das realidades envolvidas em situações como a da Covid-19. É tempo de pensarmos no nosso destino como humanidade enquanto um bem comum, algo que diz respeito e afeta tudo e a todos nós, inseparavelmente, como uma única trama, uma única sindemia…
Nota explicativa: este artigo foi escrito em parceria com o cientista social brasileiro Emerson Sena da Silveira, colega com quem tenho partilhado experiências e trabalhos científicos.
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