Com a secção ‘Sociologia do Quotidiano’ pretende-se tratar acontecimentos do dia-a-dia, através de uma análise dos processos do funcionamento e transformação da sociedade, dos diversos comportamentos e práticas (individuais e de grupos) da vida quotidiana, incluindo as interações sociais e políticas, onde se jogam os interesses (que por vezes conflituam) dos diferentes agentes sociais.
Para refletir sobre a relação entre a pandemia do Covid-19 e o comportamento coletivo, materializado na ausência do medo, vou apoiar-me em dois sociólogos clássicos, Max Weber e Émile Durkheim, e pedir uma pequena ajuda ao filósofo Michael Foucault.
Weber defende que, ao longo da história, a inter-relação de fatores sociais e culturais-religiosos forma, molda o ethos de um povo. O ethos pode ser entendido como mentalidade, costumes, traços comportamentais coletivos, a identidade de um grupo, de uma sociedade. Desta forma, Portugal também tem o seu ethos, ou seja, uma maneira peculiar de ser, pensar e agir como português.
Por sua vez, um conceito chave de Durkheim é consciência coletiva, que pode ser entendida como a força moral exterior que se impõe, sobrepõe ao puro interesse da pessoa, resultando na submissão do indivíduo ao coletivo. É o conjunto de normas morais, regras, condutas, valores, atitudes, prescrições, costumes, crenças, elementos compartilhados pelos membros da sociedade, criando, assim, formas padronizadas de comportamento.
Portanto, segundo esses sociólogos, a ideia é que as sociedades se organizam e funcionam de maneira diferente uma das outras. Além disso, é expectável que, diante de um (ou mais) problema(s), os membros ajam de acordo com as regras coletivas estabelecidas pela sua sociedade.
O que é sociologicamente interessante é que, no caso específico da pandemia do Covid-19, a população do mundo inteiro, mesmo com ‘ethos’ diferenciados, age da mesma maneira, segue o mesmo padrão de comportamento. Talvez pelo facto de o inimigo ser invisível, as pessoas desvalorizam o perigo e o medo é inexistente. Invertendo a lógica de Vigiar e Punir, do filósofo Foucault, a população não aceita ser vigiada, não obedece às normas sociais e não aceita a necessária punição.
Um pouco por todo o mundo, com comportamentos egoístas, as pessoas saem à noite para beber um copo, aglomeram-se nas ruas, organizam festas, em espaços públicos e privados e, até mesmo, participam em manifs e protestos contra as diretrizes de prevenção e contenção da pandemia, do uso de máscaras, do distanciamento físico (não confundir com o distanciamento social), medidas estas, segundo esses irresponsáveis, restritivas da mobilidade e de outros direitos individuais.
No caso específico de Portugal, podemos notar o exemplo recente de grupos que, defendendo interesses políticos e religiosos (e também económicos), organizam eventos (como o PCP, com a festa do Avante) e cerimónias religiosas, como foi o caso da enorme aglomeração de pessoas no santuário de Fátima, situação que vai agravar-se no próximo 13 de outubro. Ou seja, invertendo a lógica da ‘consciência coletiva’ de Durkheim, o interesse individual – e de (alguns) grupos – sobrepõe-se ao interesse, à integridade física e ao bem-estar do coletivo.
Assim, o negacionismo da realidade, o individualismo egoísta e as atitudes e comportamentos irresponsáveis provocaram a morte de mais de um milhão de pessoas. No entanto, infelizmente, a ausência do medo, individual ou coletiva, desse invisível – mas altamente letal – inimigo, vai continuar a provocar graves problemas de saúde, milhares de mortes, elevados estragos económicos e sociais e um caos enorme no funcionamento das sociedades.